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Há pouco mais de um ano, eu era uma pessoa deprimida após o final de Breaking Bad. Ainda havia boas séries no ar, mas nada ao nível da excelência daqueles produtos que, não só nos põem a salivar pelo episódio seguinte, como também permitem que cada capítulo possa ser "saboreado" pelos seus valores narrativos, estruturais e técnicos. Até que The Good Wife lança o já mítico 5x05 - Hitting The Fan e o meu Twitter explode em elogios - e eu, apesar de conhecer a série e já ter-lhe posto os olhos uma ou outra vez sem grande entusiasmo, ativei o modo Maria-vai-com-as-outras e lá fui ao nosso amigo torrent sacar e ver o episódio. No final, só pensava que tinha de fazer uma maratona da boa esposa e já!
Em tempos que as séries mais comentadas têm entre 10 a 13 episódios, tratam assuntos polémicos, a violência (moral ou física) rola solta e o sexo é uma constante, The Good Wife chega sem pompa e circunstância e trilha o seu caminho de cabeça levantada mesmo tendo tudo contra si. Afinal, estamos a falar de mais um drama de advogados que é transmitido em canal aberto, obedece ao padrão de 22 capítulos anuais, o conteúdo é mais restrito, a fórmula reside muito no típico "caso da semana", o seu alcance e sucesso depende inteiramente das audiências e não permite, em teoria, grandes ousadias criativas que os canais por cabo oferecem sem problemas. Além disso, a série é transmitida pela CBS que, com os seus intermináveis enlatados de investigação e comédias imbecis como The Big Bang Theory ou Two And a Half Men, faz logo torcer o nariz a quem percebe da indústria e - heresia! - a protagonista é uma mulher quarentona rodeada por adultos da mesma faixa etária - óbvio turn off para a malta mais jovem sedenta de zombies esfomeados. Mesmo em Portugal, The Good Wife é praticamente uma desconhecida exceto pelos espectadores regulares da FOX Life que também não se inibe de culpas ao tratar a série com descaso demorando meses a transmiti-la e compactando temporadas em episódios diários que diluem o efeito das mesmas.
E, ainda assim, sem sangue, sexo, palavrões, mortes chocantes e reviravoltas dignas de Shonda Rhimes, The Good Wife assume as suas limitações e aborda-as como obstáculos a contornar com histórias absorventes, personagens fortes e marcantes e uma sofisticação que raramente se vê noutros produtos contemporâneos. Poucas são as séries que chegam à sexta temporada em tão boa forma, mas aí está The Good Wife a manter o pique depois de um brilhante quinto ano que, contando com o (intenso, fabuloso, magnífico) episódio supracitado, foi a única que vi bater de frente em qualidade com a reta final de Breaking Bad. Quem acompanha e percebe da poda, sabe que não é exagero.
(Spoilers de agora em diante, mas nada do outro mundo.)
O ponto de partida, admito, não é dos mais promissores: Alicia Florrick é a esposa de um State's Attorney (o equivalente ao nosso Procurador da República - cada Estado norte-americano tem um) que se vê obrigada a voltar a exercer advocacia após anos de dedicação à família assim que o seu marido é preso por conta de um escândalo sexual e suspeitas de má conduta, tráfico de influência e desvio de dinheiro. Caída em desgraça, Alicia consegue trabalho na firma Lockhart/Gardner e tenta refazer a sua vida profissional e familiar a partir do zero. A certa altura, o termo "the good wife" deixa de fazer sentido (e os próprios criadores já admitiram que o título não é dos mais felizes ou chamativos) já que o grande arco da série trata-se da transformação da "coitadinha" Alicia que tem de provar o seu valor para os seus superiores numa mulher independente e poderosa - uma trajetória que é construída com cuidado, sensibilidade, com avanços e recuos, e que por demorar o seu tempo e ser tão detalhada para alguém que tem de cumprir os papéis de mãe, esposa, advogada, funcionária, amiga e até amante e eventualmente patroa, é perfeitamente verosímil e agradável de acompanhar uma vez que as mudanças na narrativa raramente soam bruscas ou demasiado convenientes.
E isto é um dos pontos mais fortes de The Good Wife: a série está em constante evolução e, mesmo que tenha de responder ao requisito do "caso da semana", há toda uma história nos bastidores que avança, as personagens crescem diante dos nossos olhos e arcos que duram três episódios ou meia temporada dão lugar a novos eventos que vêm na sequência lógica de tudo o que está para trás. Claro que isto não deixa de ser uma série de advogados e, como tal, a Lockhart/Gardner e Alicia ganharão 90% dos casos, o que não significa que a vitória seja total. Há uma aura de ambiguidade que se instala naquele universo e guia aquelas personagens seja num caso em que os adversários pagam uma indemnização milionária, mas bem abaixo do que pretendiam, nas concessões que os empregados exigem dos patrões que, por sua vez, tentam aliciar trabalhadores para evitar uma greve ou nos casos que remetem para notícias atuais. E por falar em atualidade, nenhuma outra série aborda a tecnologia e os seus efeitos no quotidiano com a densidade e a criatividade de The Good Wife: aqui não há espaço para posições extremas como a tecnofobia ou a reverência à mesma; há, sim, uma discussão fascinante sobre as suas implicações no modo como vivemos e interagimos uns com os outros.
No entanto, The Good Wife destaca-se mesmo é na subtileza com que discute, nas entrelinhas, temas atuais na vivência de qualquer país industrializado: o conflito geracional no mercado de trabalho em que a classe mais velha, experiente e, por isso mesmo, privilegiada só tem olhos para o lucro, manda e desmanda a bel-prazer e, em tempos de crise, tem de manter o barco à tona enquanto os jovens e recém-chegados têm de galgar terreno ou ficarão para trás na escala hierárquica cujo topo é o prémio. Não admira que os jogos políticos e as intrigas da série atirem a um canto as lutas vazias por tronos de Game of Thrones: no mundo moderno, não há nada a fazer quando a influência e o dinheiro são mais fortes que a espada.
Tudo isto, porém, pode dar a impressão que a série é um poço de soturnidade e depressão. Nada mais errado: The Good Wife é divertidíssima, tem um humor invejável e uma galeria de secundários que é uma atração à parte num dos mais abençoados e acutilantes elencos que a Televisão já viu (os meus favoritos são David Lee, o inescrupuloso representante de direito familiar da firma, e Patti Nyholm, a advogada que usa gravidezes e bebés para ganhar vantagem em tribunal, sem esquecer o sensacional Eli Gold). O destaque, porém, pertence mesmo ao leque principal de atores com Julianna Margulies a mostrar o porquê de ser considerada uma das maiores estrelas da televisão norte-americana. O trabalho de Margulies com Alicia é dos mais completos que já vi: a atriz domina todas as facetas da advogada e brilha num esforço recheado de pequenos detalhes, nuances e expressividade contida. A série cria uma bagagem emocional ao longo dos anos que resultam em cenas nas quais o silêncio, as expressões e até a linguagem corporal de Alicia dizem mais do que um monólogo inteiro de Aaron Sorkin.
Também é de destacar o respeito com que os produtores de The Good Wife tratam as figuras femininas: para além de Alicia, temos a incrível Diane Lockhart que, focada na carreira, nunca, em momento algum, fica a lamentar da falta de "um homem" ou filhos - afinal, ela está demasiado ocupada a ganhar casos atrás de casos. E - aleluia! - haja um produto de Hollywood em que duas mulheres adultas se ajudam mutuamente para atingir interesses comuns e não se envolvem em disputas amorosas ou vinganças infantis. O nosso envolvimento, aliás, com todas as personagens é tanto que, quando a série comete a ousadia de os separar e pôr em lados opostos da barricada (que é o cerne do tal episódio que destaquei no primeiro parágrafo), não há como torcer contra algum deles. Queremos que Alicia vença, mas não queremos forçosamente que os seus patrões percam - e é esta ambiguidade que torna tudo tão fascinante e divertido. Tudo isto ao sabor de um texto refinado (a escrita da série é de topo) e interpretações dignas de aplausos.
Muitos têm reclamado da atual sexta temporada porque a mesma se tem dedicado à campanha política de Alicia para o cargo de State's Attorney. Eu discordo. As politiquices são tão relaxadas e divertidas que distanciam-se do tom quase macabro que a política consegue ter numa, digamos, House of Cards, para abordar o lado mais leve, trivial e caricato que a política também consegue ter. Já para não falar que a campanha contrasta com o drama quase irrespirável de Cary Agos estar em vias de ir preso devido a Lemond Bishop, o traficante mais famoso de Chicago e cliente da Lockhart/Gardner e posteriormente da Florrick/Agos. Depois de anos a brincar na corda bamba de defender um criminoso (ainda que com a desculpa dos seus negócios legítimos), The Good Wife pega nesse detalhe insignificante e agarra o touro pelos cornos, impondo às suas personagens (e aos espectadores) dilemas morais e éticos que rios de dinheiro toldavam.
Produto televisivo sobre e para adultos, The Good Wife é imperdível e merece a oportunidade. A primeira temporada é boa, as duas seguintes são muito boas, a quarta dá uma recaída, mas recupera lá no meio e vai em crescendo até atingir patamares excelentes - que é o ponto onde nos encontramos agora. Não se deixem levar pelo nome. Alicia Florrick veio para ficar e causar estragos.