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Star Trek Into Darkness (2013)
Realização: J. J. Abrams
Argumento: Roberto Orci, Alex Kurtzman, Damon Lindelof
Elenco: Chris Pine, Zachary Quinto, Zoe Saldana, Karl Urban, Simon Pegg, John Cho, Anton Yelchin, Benedict Cumberbatch, Bruce Greenwood, Peter Weller, Alice Eve
Qualidade da banha:
Ao escrever sobreStar Trekhá quatro anos referi que a maior vantagem daquela reinvenção (e o termo ajusta-se na perfeição) era ser acessível tanto aos fãs de longa data que eram bafejados com uma lufada de ar fresco como aos recém-chegados que tinham ali uma porta de entrada para décadas e décadas de mitologia distribuídas por filmes, séries, livros e outras plataformas. Um novo universo era criado através do recurso das viagens no tempo, o que, além de demonstrar respeito pelo que já fora estabelecido no cânone da série, implicava que, a rigor, tudo poderia acontecer dali em diante. Por adorar tanto o filme de 2009 (e admito sem problemas: Star Trek nunca foi a minha praia), tinha um enorme receio que J. J. Abrams e companhia não fossem capazes de aguentar o pique e desperdiçassem todo o potencial gerado pela aquela obra – e posso assegurar que estes temores são deitados por terra diante de Além da Escuridão, uma aventura espetacular que faz justiça ao legado deixado por Gene Roddenberry.
Escrito por Damon Lindelof juntamente com os mesmos argumentistas do filme anterior, Além da Escuridão agarra o espectador e atira-o para uma sequência de ação frenética logo no início – e nunca mais o larga já que as cenas de ação sucedem-se a um ritmo alucinante. Depois de cumprir uma missão no planeta Nibiru e desrespeitar os regulamentos da Frota Estelar, o agora Capitão Kirk (Pine) é destituído do seu posto e a Enterprise passa a ser comandada pelo seu antigo mentor. É então que um terrorista que dá pelo nome de John Harrison (Cumberbatch) leva a cabo vários atentados contra a Federação e cabe à equipa da USS Enterprise descobrir o seu rasto e detê-lo a todo o custo.
Beneficiado pelo facto de já ter devidamente contextualizado as suas personagens, Além da Escuridão expande e enriquece o seu universo obrigando a tripulação da Enterprise a encarar novos desafios que, por sua vez, desenvolvem a dinâmica dos seus elementos. Se o capítulo anterior ancorava a sua narrativa na temática da filiação e das relações pais-filhos, esta sequela vai mais além ao determinar a tripulação como um verdadeiro núcleo familiar e, a partir daí, remeter para temas como a responsabilidade e a maturação emocional requeridas a qualquer membro de um grupo. Neste particular, Kirk assume o papel do líder (ainda) inexperiente que comete erros de julgamento e cuja impulsividade só é atenuada pelos relacionamentos criados com aqueles que o rodeiam, nomeadamente o emotivo Dr. Leonard McCoy (Urban) e o extremamente racional Spock (Quinto). Há uma cena em que estes discutem uma certa decisão e Abrams filma-os sentados em triângulo, o que não poderia ser mais apropriado visto que a dinâmica deste trio é a alma da geração clássica d' O Caminho das Estrelas.
E por falar na série original, convém dizer que o argumento de Além da Escuridão encontra tempo para incluir alegorias políticas que refletem questões contemporâneas – e é este lado mais "cerebral" e ambicioso de Star Trek (por oposição à fantasia de Star Wars – que eu amo do coração) que a torna tão respeitada e lembrada após tanto tempo. Desta forma, o filme questiona a validade de uma ação violenta contra uma "nação" vizinha baseada em dados falíveis como resposta a um ato terrorista ou mesmo o recurso a armas de destruição em massa como método de retaliação. Que estas questões venham embrulhadas num pacote de diversão requisitada ao típico blockbuster de Verão em nada desmerece a película: em vez de servirem como desculpa para explosões e tiroteios, estas questões são discutidas com inteligência e acabam por serem as catalisadoras de todos os acontecimentos, culminando num momento dramático em que o próprio Kirk admite que falhou.
Sem a frescura e o arrojo da obra que a antecedeu, Além da Escuridão conta com um vilão bem mais interessante que o Nero de Eric Bana: o John Harrison do excelente Benedict Cumberbatch (o Sherlock dasérie homónima) assume-se como uma ameaça letal à Enterprise com a sua voz colocada e sibilante e uma postura que exala frieza e uma perspicácia fora do normal. Entretanto, Chris Pine e Zachary Quinto mostram que nasceram para estes papéis tamanha é a naturalidade com que incorporam personagens míticas e reproduzem a riquíssima interação entre Kirk e Spock. O resto do elenco também se encontra em boa forma ainda que um pouco apagados diante dos protagonistas e do antagonista, embora a história encontre tempo e dê que fazer a cada um deles (e o timing cómico de Simon Pegg continua impecável).
Com um ritmo frenético (a meia hora final é um turbilhão de emoções) e momentos de bom humor, Além da Escuridão é simplesmente irrepreensível nos seus aspetos técnicos e visualmente estonteante: desde o planeta com a sua vegetação avermelhada em contraste com um mar impossivelmente azul ao centro de um vulcão em erupção, passando por uma Londres futurista e verosímil, o filme nunca deixa de ser um festim para os olhos (e, felizmente, J. J. Abrams mostra-se mais contido nos seus característicos flares). No entanto, é no equilíbrio entre o clima de aventuras e o peso dramático da narrativa que Abrams realmente se destaca, conseguindo harmonizar momentos mais introspetivos com situações trepidantes – tudo isto pontuado com uma banda sonora sensacional de Michael Giacchino, somente o melhor compositor da atualidade.
Incluindo inúmeras referências à mitologia da série que provocará pequenos orgasmos nos fãs, Além da Escuridão consegue a proeza de reutilizar ideias de outros capítulos (um em especial, mas referi-lo pode contar como spoiler – embora a Internet se tenha encarregue de destruir a surpresa) sem parecer uma mera cópia disfarçada de homenagem e usá-las em benefício da sua narrativa ao intensificar os arcos dramáticos de Kirk e Spock. Que Star Trek não vá onde nenhum homem jamais esteve não é problemático desde que a série se mantenha tão excitante e intrigante como tem estado desde que Abrams e companhia operaram uma revolução na velhinha USS Enterprise.
Nunca fui grande fã de Star Trek (ou O Caminho das Estrelas em Portugal): vi alguns episódios da série clássica, conheço Spock, Kirk, McCoy, alguma da mitologia, vi alguns dos filmes lançados no cinema, mas não me entusiasmei muito. Das séries mais recentes, o pouco que conheço foi através das longas-metragens, que pouco ou nada me cativaram. Caída em desgraça há já vários anos, a saga Star Trek ganha agora uma nova versão que praticamente começa tudo do zero, naquela velha lógica (Spock acharia Hollywood deveras interessante…) de baralhar e voltar a dar que, actualizando conceito e modernizando o aspecto, espera revitalizar alguma franquia e atingir as bilheteiras. Chamaram o novo Midas do audiovisual, JJ Abrams (LOST, Alias – A Vingadora, Fringe, Missão Impossível 3) que logo se declarou como pouco adepto da saga, estremecendo os fãs. No entanto, os argumentistas Roberto Orci e Alex Kurtzman, fãs declarados, fizeram com que este reboot fosse feito com o máximo respeito pelo legado da saga e é do conflito entre estas duas visões que nasce este novo e simplesmente intitulado Star Trek, cuja principal vantagem é ser acessível tanto aos fãs como todos aqueles que são alheios àquele universo.
O filme encena a juventude de Kirk, Spock e companhia, acompanhando a sua primeira missão da USS Enterprise e como todos eles foram promovidos aos seus cargos. No entanto, esta nova revitalização da saga não entra em desacordo com tudo o que foi mostrado anteriormente: a solução encontrada (que não vou revelar, mas já referida em vários artigos) revela-se engenhosa por permitir recomeçar a história e estabelecer novas possibilidades, sem atirar pela janela todo um universo cimentado em 4 décadas. Maior sinal de respeito com os fãs era impossível, ao mesmo tempo que o espectador desavisado tem uma porta aberta para entrar de cabeça naquele universo estranho que, acima de tudo, era um fenómeno de culto. Mais: o filme resgata todo o fascínio que sempre envolveu Star Trek, tornando-se fácil para o público médio identificar-se com toda a imensidão de naves espaciais, viagens em warp, teleportes, vulcanos e romulanos.
O argumento redefine a juventude Kirk e Spock, adicionando-lhes um arco narrativo de conflito pais/filhos (algo muito estimado por JJ Abrams e companhia) que resulta na perfeição por conferir novas dimensões a personagens já conhecidas, mas sem deixar de fora características típicas: Kirk continua fanfarrão (e Chris Pine interpreta-o com a adequada canastrice de William Shatner), McCoy sempre ansioso, Scotty o desvairado do costume, Uhura demonstra o bom senso e Pavel Chekov garante muitos risos com o seu sotaque carregadíssimo. Mas o mais beneficiado (actor e personagem) é Zachary Quinto como um Spock dividido entre a herança vulcana (via paterna) e a natureza humana (por parte da mãe), retraindo os sentimentos ao máximo em prol de uma postura serena e controladora. A costurar todos estes elementos, temos a realização de Abrams que imprime dinamismo ao filme, não deixando que nenhuma cena seja deixada ao acaso, revelando ainda segurança quando o assunto é a acção trepidante (algo já revelado em Missão Impossível 3).
Formado na televisão, Abrams percebeu que o cinema possibilita uma espectacularidade que a TV limita, sem com isso perder as rédeas à narrativa, que nunca se deixa deslumbrar pelos aspectos técnicos. Em poucos minutos, o público leigo é apresentado às características de cada uma das personagens, o que revela uma excelente aplicação de economia narrativa. A música do sempre óptimo Michael Giacchino dá o tom épico ao filme, alternando orquestrações majestosas com partituras mais íntimas. Porque Star Trek é, antes de mais, um filme de personagens: personagens conhecidas que se revigoram para as novas plateias e não é de estranhar que lá esteja Leonard Nimoy, como que a fazer uma passagem de testemunho a vários níveis: da sua personagem, dos fãs para os não-fãs, dos 40 anos anteriores para o século XXI. O filme só peca em algumas tentativas de humor infrutíferas e por dar pouco destaque ao vilão Nero (Eric Bana) que, no final, acaba por não ser aquela ameaça que prometia a início.
Porém, o melhor do filme é algo que deverá convencer os indecisos a assisti-lo: Star Trek é entretenimento de primeira água, uma daquelas aventuras que Hollywood parece ter perdido o condão de fabricar. A aventura, o romance, o humor e o suspense são de tal forma bem doseados que, a espaços, o filme atinge picos de excitação ao nível de Os Salteadores da Arca Perdida ou A Guerra das Estrelas. Contando com sequências de acção espectaculares e efeitos especiais irrepreensíveis, Star Trek é um hino à space opera capaz de cativar as massas para um género anteriormente cheio de chama e vigor, entretanto perdido para a artificialidade e os excessos da tecnologia. Fã ou não de Star Trek ou de ficção-científica, este novo capítulo da saga merece ser visto por toda a gente.
Ao final de Star Trek, com o tema da série a passar, não consegui deixar de imaginar os trekkies (fãs da saga) e os não-fãs em perfeita comunhão. Resultado: eu estava convertido e esperando ansiosamente pelas próximas aventuras.
Qualidade da banha: 17/20