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J. Edgar (2011)
Realização: Clint Eastwood
Argumento: Dustin Lance Black
Elenco: Leonardo DiCaprio, Armie Hammer, Naomi Watts, Judy Dench, Josh Lucas, Jeffrey Donovan
Qualidade da banha:
Louve-se a coragem de um octogenário Clint Eastwood em abraçar a biografia de J. Edgar Hoover, o polémico diretor do FBI por 47 anos, com um enfoque maior na sua vida privada do que propriamente na sua trajetória no seio da agência. Os elogios, porém, ficam-se mesmo pelas intenções, visto que J. Edgar é uma obra irregular, aborrecida e – acima de tudo – cobarde. Não adianta mergulhar no Homem se é para ignorar pontos relevantes com o objetivo de suavizar a sua personalidade: Hoover era um canalha sem escrúpulos, mas Eastwood e o argumentista Dustin Lance Black (de Milk) fazem com o mesmo seja digno de pena e, de certa forma, as suas ações reprováveis tenham alguma justificação.
Retratando as várias décadas que Hoover esteve no poder do ponto de vista do próprio (que pretende registar as suas memórias), J. Edgar adota a velha dinâmica de analepses e prolepses que, surpreendentemente, acabam por não confundir o espectador, embora não consigam contornar o problema de soarem episódicas. Assim, num momento vemos um jovial Hoover (DiCaprio) a tentar implementar mecanismos mais avançados nas investigações (como a ciência forense) em plena Grande Depressão e, noutros, um envelhecido ser que relembra a sua vida, sempre com a fiel secretária Helen Gandy (Watts) a seu lado e com aquele que viria a tornar-se o seu braço direito, o advogado Clyde Tolson (Hammer), e alvo das suspeitas que de um romance entre os dois, ainda que casto.
O preocupante em J. Edgar é o facto de que, por ser uma biografia, este aprofunda pouco o seu objeto de estudo: quem era realmente J. Edgar? Por que Gandy e Tolson o acompanharam por tantos anos se ele revelasse uma pessoa mesquinha, paranóica e vingativa? Como conseguiu ele escapar por tantos anos incólume à base de chantagens de segredos sexuais dos seus inimigos políticos? Ele serviu oito presidentes; como ninguém lhe deitou a mão? As respostas, infelizmente, acabam abordadas ao de leve e o seu compromisso com o trabalho é refletido numa espécie de submissão à mãe (Dench), que quase o transforma num Norman Bates. A sua relação com Tolson, por outro lado, é construída com subtileza e com uma tensão sexual constante, mas não materializada, sendo apenas estragada por pavorosos diálogos como "teremos que almoçar e jantar juntos todos os dias, para sempre" ou um "amo-te Clyde" dito por Hoover quando o companheiro se ausenta.
Com uma óbvia palete de cores frias e cinzentas e uma iluminação que deixa várias cenas decorrerem na escuridão total (o que é péssimo), J. Edgar faz uma boa e consistente reconstituição de época, o que é notável para uma história que abarca cinco décadas distintas, mas a película espalha-se ao comprido no quesito da maquilhagem usada para envelhecer as personagens que é simplesmente medonha (DiCaprio parece um boneco de cera ambulante). E por falar no protagonista, resta dizer que o ator faz um trabalho tão calculado nos tiques e no tom de voz que soa tudo menos natural e mais como alguém desesperado por um Oscar. Já Naomi Watts surge apagada, tal como Judi Dench, e só mesmo Armie Hammer provoca alguma comoção na cena em que confronta J. Edgar e dá a entender que compreende melhor a relação entre ambos do que o seu parceiro, que basicamente recalca os seus sentimentos e impulsos (como visto noutra ótima cena em que Hoover tenta explicar a sua condição à mãe).
Sem saber o que fazer com as acusações de homofobia, racismo e misoginia que cercaram a figura do diretor após a sua morte, Eastwood passa uma esponja sobre o assunto e ainda se dá ao desplante de fazer com que J. Edgar se oponha à caça aos comunistas levada a cabo pelo execrável Senador Joseph McCarthy, como se ambos tivessem ideologias muito diferentes. Já as alegações de travestismo e homossexualidade são tratadas com outro rigor e sensibilidade, embora o veterano realizador force a mão ao retratar o quarto de Hoover como um amontoado de figuras fálicas e vestes femininas.
O pior, no entanto, é ver que J. Edgar tinha a desculpa ideal para traçar um retrato mais simpático de Hoover, já que a ideia que move a narrativa são as suas memórias (o que não isenta o filme da sua moralidade falhada, claro), apenas para arruinar tudo numa cena em que Tolson expõe várias mentiras perpetuadas por J. Edgar no livro do qual é autor – e se houve coragem para, num último fôlego, revelar o cinismo e a corrupção da sua personagem principal, por que não houve para tudo o resto?
J. Edgar Hoover foi tudo menos um coitadinho e desconfio que até o próprio desprezaria esta biografia.
Seguem as impressões sobre dois filmes que assisti ontem.
Brincadeiras Perigosas
Funny Games U.S.
Nova versão do austríaco Funny Games (1997), realizado pelo mesmo cineasta, Michael Haneke, porém toda a história é estabelecida nos Estados Unidos (daí a adição do “U.S.” no nome original). No fundo, Haneke acabou por refilmar a sua própria obra praticamente plano-a-plano, o que levará a questões sobre a validade de realização de uma obra que mais não será uma cópia da original e cuja história não se desvia nem um milímetro da anterior. Assim, os resultados desta nova versão terão de ser analisados consoante as reacções que provoca e, neste aspecto, o filme não desilude: apesar de soar redundante, Brincadeiras Perigosas é, tal como o original, um filme perturbador e um interessante ensaio sobre a relação do espectador com a violência, tendo os media como intermediários.
A calma das férias de uma família é interrompida com a chegada de dois indivíduos que se dispõem a fazer cruéis jogos psicológicos, apostando que Ann, George e o filho de ambos, Georgie, estarão mortos na manhã do dia seguinte. A objectiva de Haneke retrata, nos minutos iniciais, a família idílica, cuja estabilidade será abalada: assentando todo o seu filme em longos planos sequência que servem para carregar a tensão no espectador (a princípio, há a ideia de que algo horrível irá acontecer; mais tarde, tememos o que poderá vir a seguir), o filme estabelece que a violência psicológica provocada na audiência consegue ter efeitos mais nefastos que a violência gráfica. E tudo isto é executado numa obra cujas cenas violentas ocorrem fora do ecrã: o espectador apenas imagina (por sons ou expressões nas restantes personagens) o horror que sucede naquela casa, o que torna tudo mais assustador.
Fazendo da audiência sua cúmplice naquilo que mostra (um dos psicopatas, Paul, interage directamente com o público, quebrando a “quarta parede”), Haneke concede-nos o estatuto de voyeur (como já havia feito no aborrecidíssimo Caché – Nada a Esconder), sem no entanto fazer um exercício de perversão, como no recente Hostel. Aqui, a intenção é clara: mostrar à plateia a curiosidade absurda que, hoje em dia, o ser humano tem para com a violência, nos diversos meios de comunicação. Actualmente, há uma certa banalização da violência: basta assistir aos telejornais com as suas notícias sensacionalistas ou ver filmes de Hollywood que acabam por glorificar a violência, seja como meio para se atingir um fim ou seja para fins de entretenimento.
Os actores cumprem visceralmente os seus papéis, com destaque para Naomi Watts no papel de Ann, Brady Corbet, que transmite uma certa ingenuidade e imprevisibilidade a Peter, e Michael Pitt no papel de Paul, que, com os seus discursos plenos de sadismo, revela-se o mais perigoso dos dois. O grande problema do filme é mesmo o facto de não trazer nada de novo: quem viu o original, escusa de assistir a este e vice-versa. Mas, para os recém-chegados, a viagem vale muita a pena.
Qualidade da banha: 15/20
Hancock
Hancock
John Hancock (Will Smith, com o carisma de sempre) é o único super-herói do mundo actual. Afundado na bebida e sempre mal-humorado, as suas acções acabam por resultar numa opinião pública negativa que o obriga a retratar-se. Depois de salvar um relações públicas fracassado, Ray (Jason Bateman, o costume), acaba por aceitar a sua ajuda de modo a melhorar a sua imagem. Como comédia, o filme deixa muito a desejar: a partir da metade, a família de Ray e a busca pelas origens de Hancock passam a ser o foco principal da película; como filme de acção, também não é lá grande coisa, com cenas de acção espalhafatosas e cujos efeitos especiais por computador podiam ser mais caprichados.
O argumento, no meio de tanta coisa a abordar (a recuperação, a origem, a vingança dos vilões, o impacto de uma revelação sobre a mulher de Ray, Mary), acaba por andar aos solavancos e diluir todos os enredos numa resolução sem muita chama. Ao menos, somos poupados da velha história do herói que, novamente nas boas graças do público, se deixa consumir pela fama, descobrindo o valor dos laços familiares e de amizade mais tarde (não é que o desenvolvimento seja brilhante, mas, se fosse este, abandonava o filme a meio). O certo é que Hancock tem boas ideias; executá-las é outra história. E o filme perde-se.
Recheado de furos (como os vilões sabiam da fraqueza de Hancock? Porque este não foge do hospital, se a sua presença lá põe em risco a vida de outra pessoa? Porque é que, a certa altura do filme, os seus poderes oscilam, quando deveriam diminuir gradualmente?) e situações mal explicadas (Ray parece aceitar a situação da esposa muito facilmente; um noticiário informa da fuga dos vilões da prisão, e mal; Mary, a certa altura, não quer que se saiba o seu segredo, mas, logo a seguir, participa numa cena de acção com centenas de pessoas a assistir!), o filme até consegue entreter razoavelmente, graças ao carisma de Smith e Bateman. Ao passo que Charlize Theron cria uma personagem séria demais para um filme deste género, eles os dois divertem-se a valer nos seus papéis. Um filme esforçado e só.
Qualidade da banha: 9/20