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Alguém acreditaria se eu dissesse que, nos últimos dias ao deitar, leio um pouco do Sei Lá da Margarida Rebelo Pinto?
Pois se alguém acreditar, EU DESMINTO TUDO!! É MENTIRA! UM ULTRAGE! UMA INFÂMIA!
Agora me vou que a Madalena começou a andar com o Francisco e parece ter esquecido o Ricardo e a Catarina sempre soube das traições do Bernardo.
Especial Férias de Verão (já parece os Morangos com Açúcar...)
Nota prévia: não li a obra de José Saramago na qual o filme se baseia, logo não posso estabelecer um termo de comparação entre a obra cinematográfica e a obra literária. Embora eu não considere isto um factor que me impeça de analisar o filme, assim como tal não me impediu de apreciar ou repudiar obras como O Senhor dos Anéis, a saga Harry Potter ou O Código Da Vinci.
Uma epidemia inexplicável começa a alastrar numa cidade qualquer: as pessoas deixam de ver e passam a sofrer de uma "cegueira branca". Lidando com um mal altamente contagioso e vendo o país a mergulhar no caos, o Governo decide conter a doença enviando os doentes para camaratas isoladas sob regime de quarentena. Este é o mote de Ensaio Sobre a Cegueira, adaptação a cargo de Fernando Meirelles (Cidade de Deus, O Fiel Jardineiro) que se revela a escolha adequada para a realização: nas suas mãos, o filme transforma-se numa bela e, por vezes, dura metáfora sobre a sociedade actual. Se fosse um tarefeiro qualquer de Hollywood a comandar este projecto, de certeza que veríamos um filme que explicaria de forma (pouco) científica a origem da cegueira e que incluiria uma resolução para a mesma que se cruzasse com o arco narrativo da personagem de Julianne Moore, que é o centro do filme e o elo de ligação com o espectador.
No universo de Ensaio Sobre a Cegueira, as personagens não têm nomes: Julianne Moore é a Mulher do Médico que acompanha o marido (Mark Ruffalo) para as camaratas, embora ela não seja atingida pela epidemia e lá testemunhará um quase campo de concentração moderno. A eles juntam-se um cego, uma mulher que anda sempre de óculos escuros, um miúdo que não sabe da mãe, um casal oriental, um ladrão e muitos outros indivíduos numa clara comprovação que a sociedade encara (e ajuíza) os seus membros segundo estereótipos, relegando as suas particularidades para segundo plano. Esta é a verdadeira "cegueira" do mundo actual, muitos antes da cegueira (literal) que assola aquelas personagens: a incapacidade de estabelecer um vínculo genuíno entre os seus pares, torna o Homem num ser estranho no seu próprio habitat. Não é por acaso que o filme contém duas belíssimas cenas (a da chuva e a do banho partilhado pelas mulheres) em que se advoga a comunhão estabelecida entre aqueles sujeitos que, apesar de tudo, conseguem ver para lá da cegueira.
Meirelles, aliado ao seu director de fotografia habitual César Charlone, mergulham o filme num contraste entre planos secos e brancos e outros mais escuros e instáveis (como nas cenas passadas na camarata 3), recorrendo ainda a planos desfocados para permitir que o espectador se sinta na pele das personagens. As interpretações são excelentes, a começar por Julianne Moore que revela gradualmente a transformação que se opera na sua personagem, passando da preocupação inicial com o marido até se tornar responsável por muitos companheiros das camaratas. Mark Ruffalo também confere grande intensidade ao Médico, principalmente nas cenas tocantes em que refere que vê o seu papel como Homem ser reduzido a nada (neste ponto, Ensaio Sobre a Cegueira também pode levar a discussões sobre o feminismo, uma vez que é uma mulher que guia aquele conjunto e serve de mãe, confidente, amante, presta cuidados e que os inspira a lutar). Porém, o grande destaque a nível de interpretações - e aposto que passou ao lado de muita gente - é o casal oriental interpretado por Yusuke Iseya e Yoshino Kimura que se destacam pela relação tocante entre ambos e que será posta à prova num dos momentos mais angustiantes da película (quem viu sabe qual é).
De salientar também a direcção de arte que não mede esforços em mostrar, sem eufemismos, a degradação que vai tomando conta do abrigo como reflexo do interior das personagens e, principalmente, quando a acção se desvia para a metrópole deserta e caótica, onde os cegos deambulam como se fossem mortos-vivos. Mas nem tudo é perfeito e o grande defeito do filme reside na personagem do Velho da Venda Preta que surge desperdiçado e cujas narrações soam intrusivas, redundantes e gratuitas (pelos vistos, houve muita película a ficar no chão da sala de montagem). E isto é decepcionante porque, pelo que li por aí, a sua personagem é deveras importante no livro e o seu envolvimento com outra parece surgir do nada (isto no filme). De qualquer das formas, há algumas pontas mal explicadas no filme, como por exemplo o abandono da região e o aparente descaso da comunicação social com a situação de quarentena. Mas nada que estrague o resultado final. Ensaio Sobre a Cegueira não é um filme para todos. Mas aqueles que conseguirem olhar para lá do choque e da provocação, vislumbrarão uma mensagem nobre e um filme belíssimo. Lá está: a diferença entre ver e ver.
Qualidade da banha: 16/20