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Fifty Shades of Grey (2015)
Realização: Sam Taylor-Johnson
Argumento: Kelly Marcel
Elenco: Dakota Johnson, Jamie Dornan, Jennifer Ehle, Eloise Mumford, Victor Rasuk, Luke Grimes, Marcia Gay Harden
Qualidade da banha:
Uma grande amiga minha passou-me, certa vez, uma cópia de As Cinquenta Sombras de Grey. Ninguém diria que se tratava desse livro já que ele vinha encapado em papel para, segundo ela, "não ser julgada pela sociedade ao ler em público". Achei piada, mas não consegui deixar de pensar que ela tinha a sua razão: numa sociedade que ainda trata tópicos sexuais como tabu ou com indignação, o simples ato de ler um livro poderia ser encarado como algo condenável. Agora que vi a adaptação cinematográfica, creio que quem deveria andar em público encapado em papel são os envolvidos nesta porcaria embalada por puro marketing e hype. Mesmo retirando as revoltantes questões morais da equação (já lá vamos), As Cinquenta Sombras de Grey é um filme muito, muito, mas mesmo muito mau.
Adaptado do best-seller de E.L. James que, por sua vez, originou-se como um fan fiction da saga Twilight (parem um minuto e reflitam sobre isto), a história começa com Anastasia Steele (Johnson), uma finalista universitária que, a pedido de uma amiga, vai entrevistar o jovem milionário Christian Grey (Dornan). Imediatamente atraída por ele e disparando frases de psicologia barata minutos depois de o conhecer, Anastasia vê-se cortejada por Grey e como não cair em tentação? Ele é rico, bonito, veste-se bem e tem gosto refinado. É também arrogante, possessivo e controlador - e quando não está ocupado a ser tudo isto, Christian mantém um "segredo": fetiche por práticas BDSM.
Este fetiche é provavelmente a razão do imenso sucesso do livro e simultaneamente um dos maiores problemas da narrativa: abordado como um desvio comportamental pecaminoso e que deve ser reprimido e não como uma expressão diferente dos impulsos sexuais de Christian, os jogos sexuais praticados pelo casal demonstram o conservadorismo da proposta de E.L. James que pinta o milionário como um individuo que tem de ser salvo da "perversidade" que o rodeia. E não deixa de ser estúpido e contraditório quando é o próprio Christian a pedir que a amada tenha uma "mente mais aberta" quando o filme onde se insere não a tem. Além do mais, é óbvio que Anastasia entrega-se aos abusos físicos e psicológicos de Christian para não o perder, já que a moça nunca parece tirar o mesmo prazer que ele das práticas BDSM - e sempre que ela hesita e se afasta, o rapaz oferece-lhe presentes caros, na mais pura lógica de prostituição gourmet, e persegue-a para todo o lado, embora o filme ache que ele é doente por ter fetiches e não pelo seu comportamento obsessivo.
Claro que Christian encontra a presa perfeita em Anastasia: com uma falta de amor próprio gritante e desconfortável até na presença da melhor amiga, a rapariga deslumbra-se e anula-se por ter tamanho bom partido atrás dela - e o facto de insistentemente morder os lábios é o pico de complexidade que a personagem alcança (eu espero sinceramente que aqueles lábios tenham recebido o devido cachet). Anastasia é tão boa onda, tão pura e virginal que mantém-se perdida de amores ao ouvir coisas como "És minha" e "Agora não vais fugir" sem fugir a sete pés que é o que faria qualquer mulher minimamente sensata. Daí que não seja surpresa vê-la no início com roupas feias que a tapam por completo (incluindo, duh!, uma blusa florida) e, mais tarde, com vestidos mais sensuais que revelam as suas curvas, pernas e decote num claro indício da mentalidade tacanha e perigosa de que a influência de Grey acaba por ser positiva.
Entretanto, As Cinquenta Sombras de Grey sabe o que faz e para quem faz: aos dez minutos de filme já vimos Anastasia enquadrada com um símbolo fálico (um arranha-céus), um lápis na boca, olhares apaixonados e 238 mordidas de lábio. Já as esperadíssimas cenas de sexo são de uma frustração atroz: há uns gemidos, enquadramentos estratégicos para que se veja alguma coisa, mas não muita coisa, há música romântica no fundo e demasiado glamour e pasteurização para uma situação de sexo extremo. Num mundo com Ninfomaníaca, Vergonha e A Vida de Adèle, As Cinquenta Sombras de Grey é tão inofensivo que podia, por comparação, passar na televisão nacional num domingo à tarde para toda a família.
Por outro lado, quando não inspira revolta ou irritação, o filme é somente entediante. Entregues a um cabrão e a uma sonsa que estão duas horas presos à tortuosa dinâmica de "quero-te/deixa-me/volta aqui/vai-te embora/não me abandones" digna de Stephenie Meyer, o espectador até pode encontrar algum conforto na comédia involuntária que quase explode no ecrã graças aos péssimos (e hilariantes) diálogos, à falta de carisma do elenco, ao desfecho que é um autêntico anticlímax (ups!) e, claro, à mordida de lábio que até tem direito a um grande (enorme!) plano.
Deprimente, contudo, é o facto desta fantasia sexual machista ter sido criada, adaptada ao cinema e realizada por três mulheres que incrivelmente não percebem que relegam o género feminino a algo que deve ser objetificado, controlado e humilhado em nome do "amor verdadeiro".
E pensar que ainda há mais dois livros disto para adaptar. Ugh!
Contagion (2011)
Realização: Steven Soderbergh
Argumento: Scott Z. Burns
Elenco: Matt Damon, Laurence Fishburne, Marion Cotillard, Kate Winslet, Elliott Gould, Jude Law, John Hawkes, Enrico Colantoni, Bryan Cranston, Jennifer Ehle, Gwyneth Paltrow
Qualidade da banha:
O que aconteceria se uma pandemia de um vírus mortal deflagrasse nos dias de hoje? Contágio debruça-se sobre esta questão, começando na origem da infecção, a corrida desesperada por uma cura pelas autoridades médicas internacionais e mergulhando nas implicações políticas e económicas – e, neste aspecto, o filme é bastante detalhado e interessante por abordar como o planeta reagiria à crise e os efeitos da mesma na população. Contudo, ao investir em várias histórias paralelas, Contágio mal consegue aprofundar as suas personagens e perde-se em clichés à medida que a devastação toma conta do planeta.
Iniciando-se no "Dia 2" da epidemia, Contágio não perde tempo a enfocar a rápida disseminação da doença: Beth Ehmoff (Paltrow) é uma empresária que regressa doente da China para os Estados Unidos e, pouco tempo depois, morre bem como o seu filho infectado, ao contrário do seu marido, Mitch (Damon), que ficou imune. A partir deste ponto, acompanhamos as tentativas do Centro de Controlo de Doenças em conter a propagação do vírus e as acções da Organização Mundial de Saúde na descoberta do ponto de partida da epidemia e de uma forma de erradicá-la. Ao mesmo tempo, vemos a reacção mundial numa escalada de paranóia e medo alimentada pelos meios de comunicação, nomeadamente a Internet e o blogger e teórico da conspiração, Alan Krumwiede (Law).
Com um sensacional elenco a dar vida a todas estas narrativas, Contágio prefere debruçar-se sobre os aspectos científicos da questão e os melhores momentos da projecção são aqueles nos quais seguimos os esforços para isolar o agente patogénico, a exaustão destes processos e os avanços e recuos de todos os envolvidos. Além disso, o argumento faz questão de conferir verosimilhança à história ao citar outras pandemias como a recente Gripe Suína, a Gripe das Aves ou a Gripe Espanhola e apontar dados como o facto de um vírus ser um organismo em constante luta pela sobrevivência pela busca de um novo portador, visto que o actual infectado eventualmente morrerá, e também enfocar as diferentes formas de propagação e eventuais comportamentos de risco. Por outro lado, o filme mete os pés pelas mãos ao retratar a Televisão como mediadora entre as classes científicas e políticas e a população e a Internet como força destrutiva e causadora do pânico que toma conta dos seres humanos, algo que não só é redutor, mas provavelmente falso, como comprovam as atitudes recentes aquando a Gripe Suína.
Outro problema de Contágio é a sua inabilidade na componente humana da narrativa – e bem que eu poderia usar a expressão "descaso" sem qualquer conotação negativa, já que grande parte da película descarta (e bem, a meu ver) os dramas pessoais das personagens que, convém referir, têm pouco tempo de antena e são vividos por actores aos quais facilmente atribuímos certas particularidades (a autoridade de Fishburne; o profissionalismo de Winslet; a simpatia de Damon; e por aí fora...). Assim, quando a narrativa vira o seu foco para o mundo pós-apocalíptico a braços com uma catástrofe, os lugares-comuns deflagram mais depressa que o vírus em si e o esforço em encerrar o filme numa nota mais positiva e sentimental surge deslocada e sem o envolvimento necessário para que o público se comova.
Dono de uma carreira interessante (porém, irregular) que mistura o cinema comercial com o mais experimental, Steven Soderbergh poderia ter aqui mais uma obra à altura do espectacular Traffic – Ninguém Sai Ileso (com o qual Contágio divide algumas semelhanças nas narrativas paralelas) e a montagem faz um bom trabalho ao manter todas as histórias em andamento e com fluidez, sendo ainda bem sucedida ao retratar a passagem do tempo. Por outro lado, os planos de ruas destruídas, cidades mergulhadas no caos e populações assustadas nunca deixam de lembrar dezenas de outras produções.
Desta forma, Contágio acaba por não fazer melhor que tantos outros disaster movies, embora também não faça pior; o que em tempo de vacas magras já é bem meritório.