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The Adventures of Tintin (2011)
Realização: Steven Spielberg
Argumento: Steven Mofatt, Edgar Wright, Joe Cornish
Elenco: Jamie Bell, Andy Serkis, Simon Pegg, Nick Frost, Daniel Craig
Qualidade da banha:
Aquando a estreia de Os Salteadores da Arca Perdida, em 1981, houve quem comparasse Indiana Jones a Tintin e com razão, já que as aventuras do arqueólogo emulavam na perfeição o espírito da banda desenhada de Hergé com os seus artefactos místicos, voltas ao Mundo, personagens carismáticas e um sentido de diversão contagiante. Assim, nada mais justo que seja o próprio Spielberg a comandar a produção que leva o jornalista loiro e de poupa inconfundível de volta ao grande ecrã, ainda mais com produção de Peter Jackson (que dispensa apresentações) e argumento de Steven Mofatt (das séries britânicas Sherlock e Doctor Who), Edgar Wright (dos óptimos Shaun of the Dead e Hot Fuzz) e Joe Cornish (do pouco visto, mas elogiadíssimo, Attack the Block). Além disso, demonstrando imenso respeito pela obra original, Spielberg optou por manter a estética de Hergé ao recorrer à técnica do performance capture, já usada em filmes como a trilogia O Senhor dos Anéis, Polar Express, Beowulf eAvatar. Tanto talento junto e o resultado é frustrante. Comparações com Indiana Jones só se for com o lamentávelReino da Caveira de Cristal.
Combinando elementos dos álbuns O Caranguejo das Tenazes de Ouro, O Segredo do Licorne e O Tesouro de Rackam, o Terrível, As Aventuras de Tintin traz o personagem-título (Bell), sempre acompanhado do fiel Milu, no encalço de um segredo que está relacionado com uma réplica de uma embarcação que ele recentemente adquiriu: o Licorne. O modelo é cobiçado pelo misterioso Sakharine (Craig) que o deseja para descobrir o tesouro de um pirata do século XVII, o que levará Tintin a conhecer o rabugento e ébrio Capitão Haddock (Serkis) e a ter a ajuda dos inseparáveis detectives Dupond e Dupont (Pegg e Frost).
Visualmente falando, o filme acerta ao respeitar o traço de Hergé e a situar a acção numa época que remete às décadas de 30 e 40, algo que traz uma aura de nostalgia, visto que esses anos foram férteis em histórias de acção e aventura tanto na Europa como nos Estados Unidos que fervilhavam as mentes de um povo a braços com uma nova guerra mundial. Dos cenários que oscilam entre o realismo e o cartoon às caracterizações das personagens, passando pelas texturas, luzes e sombras, e acabando na manipulação de elementos problemáticos como o fogo e a água, Tintin é tecnicamente irrepreensível - ou quase (e isto é o grande problema do filme), uma vez que a técnica do performance capture revela-se um defeito capaz de sabotar a narrativa. Nota-se um imenso avanço desde Polar Express e Beowulf, mas a técnica ainda tem muito caminho a percorrer no que ao fotorealismo diz respeito: as personagens continuam a demonstrar uma inexpressividade alarmante, com o olhar "morto" como se estivessem cegas e movem-se de forma mecânica e pouco fluida.
Isto, obviamente, compromete o envolvimento emocional do público: há algo naquelas acções e naqueles olhares que não bate certo e dificilmente alguém se preocupa com o perigo que um ser digital corre ao envolver-se numa luta ou numa perseguição. Tomem, como exemplo, a cena em que um cartaz anuncia o espectáculo da cantora de ópera Bianca Castafiore: vemo-la de perfil, em pose, igual aos desenhos de Hergé e, logo de seguida, somos apresentados à personagem real que mais se assemelha a um boneco de cera ambulante no qual os movimentos da boca parecem não responder adequadamente aos músculos da cara. Apesar de contar com tecnologia digital de ponta, O Segredo do Licorne falha redondamente onde não podia falhar; tirando alguns momentos do Capitão Haddock e do encantador Milu, o filme não consegue injectar vitalidade naquela gente – e até o pobre Tintin é deixado a debitar pensamentos em voz alta, um recurso que faz sentido na banda desenhada, mas que no cinema só acentua o carácter expositivo de uma arte distinta.
Esta falta de vida contagia tudo o resto: Spielberg vê-se obrigado a mexer a câmara de um lado para o outro, talvez para mostrar as potencialidades do novo brinquedo que tem em mãos e a investir em objectos apontados e atirados para a objectiva, sem que isto tenha alguma função narrativa e surja mais como justificação rasteira para o irritante 3D. No entanto, a sequência inicial do carteirista comprova a inventividade do realizador em trabalhar com animação e alguns raccords (passagens de cena) visuais são imaginativos. Noutros casos, Spielberg atira qualquer noção de ritmo e espaço pela janela, como na perseguição pelas ruas de uma cidade marroquina que, composta por um longo plano sem cortes, transforma-o automaticamente no anti-Michael Bay na forma, mas não no conteúdo, já que o caos visual toma conta do ecrã e não se percebe nada do que acontece.
Costurando com relativo sucesso partes de três livros diferentes, O Segredo do Licorne é uma obra emocionalmente oca e há alturas em que lembra um videojogo tal é o virtuosismo que os produtores querem imprimir à força toda, algo que só torna a condução da narrativa cada vez mais robótica e amorfa, sendo ainda pontuada por uma das piores partituras que o grande John Williams já compôs. Não há emoção, nem a sensação de que algo ou alguém está em risco, muito menos o arrebatamento de um entretenimento à altura dos escritos de Hergé. Apenas a tecnologia digital ao (des)serviço do cinema e criaturas que são a cara chapada da banda desenhada, sim senhor, mas que não têm um décimo do charme e da alma que os desenhos proporcionam.
E isto é algo que os computadores simplesmente não conseguem capturar.
Rise of the Planet of the Apes (2011)
Realização: Rupert Wyatt
Argumento: Rick Jaffa, Amanda Silver
Elenco: Andy Serkis, James Franco, Freida Pinto, John Lithgow, Brian Cox, Tom Felton
Qualidade da banha:
De todos os Planetas dos Macacos só vi o original (hediodamente traduzido em Portugal como O Homem que Veio do Futuro) e a espectacular e mal-amada versão de Tim Burton. No entanto, considero a saga como um produto instigante que, para lá do aparato técnico, providencia saudáveis discussões sobre questões sociais como racismo, preconceito, integração, hierarquia, aceitação e liderança – e, como nunca é demais repetir, a aplicabilidade destas discussões no nosso quotidiano a partir de conceitos absurdos é algo que só está ao alcance dos melhores exemplos da ficção científica. Deste modo, é reconfortante perceber como um "recomeço" claramente desenvolvido com intenções comerciais como é este Planeta dos Macacos: A Origem aborda todos os tópicos acima referidos e preocupa-se mais em abordar a moralidade das suas personagens do que em pavonear os seus efeitos especiais que, impressionantes, pertencem à categoria de "cair o queixo".
Situado nos dias actuais, o argumento traz Will Rodman (Franco), um promissor e talentoso cientista que procura uma cura para a doença de Alzheimer fazendo experiências genéticas com um vírus em macacos. Este provoca uma mutação nos primatas, aumentando-lhes a inteligência, e, após um acidente com uma das cobais durante a apresentação da cura para um comité de investidores, Will decide adoptar uma das crias que, com o passar do tempo, desenvolve uma inteligência e personalidade únicas. Isto desencadeará uma série de trágicos eventos que levarão a que César (a tal cria) se rebele contra a raça humana.
É impossível falar de Planeta dos Macacos: A Origem sem começar por César que é, sem dúvida, o protagonista da história: criado pelos técnicos da Weta Digital com o auxílio de Andy Serkis, o primata é um assombroso progresso na técnica do motion capture (aquela em que os movimentos dos actores são capturados e depois trabalhados) e que já nos havia dado figura marcantes como Gollum, King Kong, Davy Jones e fartamente usada emAvatar. O esmero na criação de César não passa só pela fluidez dos seus movimentos animalescos ou pela textura do seu corpo peludo que reage com naturalidade às mudanças de luz e ao contacto com superfícies. O que realmente o difere de outras criaturas é o seu olhar e como ele serve de janela para uma infinidade de sentimentos: da pureza mais infantil ao receio do perigo, passando pelo rancor e acabando no amor que sente por Will e o pai deste (que o acolheram e criaram como se fosse da família), César é mais do que um ser bem realizado por CGI – ele é aquilo que muitos actores de carne e osso não conseguem: uma personagem tridimensional.
A manifestação destas dualidades é mais do que adequada à proposta do filme que, acima de tudo, funciona como uma parábola sobre a paternidade (Will torna-se indirectamente pai de César para ajudar o seu progenitor), o papel da família e a velha questão do que é ser humano. César torna-se mais inteligente, mas não é nenhuma máquina: tem instintos protectores em relação aos seus, revela certa desconfiança/ciúmes para com novos integrantes no seu círculo e revolta-se contra as restrições que a sociedade lhe impõe, numa trajectória que encontra reflexo na de um adolescente comum que questiona a autoridade paternal e molda o seu carácter através do conflito. O problema (para nós) é que ele é um chimpanzé e, ao ver-se no meio dos seus semelhantes, encontra a força que nunca teria sozinho para ultrapassar as adversidades, numa típica reacção de uma minoria que tenta lutar pela igualdade e aceitação na sociedade.
O resto do elenco faz o que lhe é pedido: James Franco é competente no dilema moral de um Will dividido entre a conduta profissional e o dever de pai, John Lithgow é sensível como um pai enfermo, Freida Pinto é bonita que chegue para esquecermos que o seu papel não é mais do que um simples interesse amoroso (embora seja a única a confrontar Will) e Tom Felton (o Draco Malfoy de Harry Potter) encarna o tratador de animais que despreza o que faz como um vilão meramente uniforme. No entanto, o filme é mesmo de Andy Serkis e o seu César: é comovente ver a sua entrega ao choro após uma acção particularmente dolorosa para com Will ou assistir ao seu olhar orgulhoso e confiante após ser aceite pelos seus pares.
Oriundo do Reino Unido, o realizador Rupert Wyatt mostra-se perfeitamente à vontade a lidar com milhentos efeitos especiais e a conduzir a narrativa num crescendo de tensão que culmina na espectacular sequência da ponte Golden Gate, na qual as cenas de acção são orquestradas com elegância e impacto. O trabalho de Wyatt (aliado ao roteiro) é tão eficiente que não permite que a previsibilidade da história (ainda mais para quem conhece a série) comprometa a experiência do espectador e merece aplausos pela subtil ironia dramática que atravessa todo o filme: a de que a ruína da Humanidade virá através dos seus próprios actos e não como consequência da revolta dos macacos. Desta forma, Planeta dos Macacos: A Origem revela uma faceta ambiciosa, inteligente e intrigante debaixo da sua capa de blockbuster de Verão.
Que mais se pode pedir a uma boa ficção científica?