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Thor: O Mundo das Trevas

por Antero, em 05.11.13

 

Thor: The Dark World (2013)

Realização: Alan Taylor

Argumento: Christopher Yost, Christopher Markus, Stephen McFeely

Elenco: Chris Hemsworth, Natalie Portman, Tom Hiddleston, Anthony Hopkins, Stellan Skarsgård, Idris Elba, Christopher Eccleston, Adewale Akinnuoye-Agbaje, Kat Dennings, Ray Stevenson, Zachary Levi, Tadanobu Asano, Jaimie Alexander, Rene Russo

 

Qualidade da banha:

 

Facto: quem não gostou de Homem de Ferro 3 provavelmente também não irá gostar de Thor: O Mundo das Trevas. Ambos sofrem do mesmo mal: excesso de piadinhas, história superficial e genérica, festival de efeitos especiais como se isso sustentasse qualquer narrativa. No entanto, eu que até gostei moderadamente da terceira aventura de Tony Stark vejo-me na posição de ter de cascar forte e feio no segundo capítulo do Deus do Trovão. Aqui não há Robert Downey Jr. a salvar a honra do convento ou boas ideias espalhadas aqui e ali (como a revelação sobre a natureza de Mandarim), embora o resultado seja praticamente o mesmo: uma oportunidade falhada.

 

Realizado por Alan Taylor (que comandou alguns episódios da chatíssima série Game of Thrones), O Mundo das Trevas traz Thor (Hemsworth) a corrigir os problemas que se levantaram nos Nove Reinos depois dos eventos de Os Vingadores. De volta a Asgard onde deverá ocupar o lugar de Odin (Hopkins) no trono, Thor não consegue esquecer Jane Foster (Portman) que ainda o espera passado tanto tempo. Com o aproximar de um raro alinhamento dos Nove Reinos, vários portais são abertos que levarão a que Jane tome contacto com uma força destrutiva chamada Aether e que desperta o moribundo Malekith (Eccleston), cuja missão é apoderar-se desse elemento e destruir o universo.

 

Escrito por três pessoas (sendo que mais duas ajudaram a elaborar a história), Thor: O Mundo das Trevas serve mais como epílogo de Os Vingadores visto que perde imenso tempo em explicações sobre o que aconteceu ao protagonista após os eventos desse filme e a fazer várias referências ao universo da Marvel. O problema é que estas menções são convenientemente esquecidas para explicar certas situações: ora, porque é que os outros heróis não auxiliam Thor já que o universo que está em causa? Porque a SHIELD não intervém para deter a destruição de Londres? E como a ponte Bifrost foi reconstruída após o final do filme anterior? Em vez disso, o filme prefere pôr Loki (Hiddleston) a incorporar o Capitão América apenas para arrancar mais gargalhadas.

 

Prejudicada pelo tremendo sucesso de Os Vingadores, a Marvel vê-se numa encruzilhada artística: há que dar ameaças maiores às aventuras a solo dos seus heróis, mas sem que haja o perigo de alterar o rumo dos acontecimentos gerais para que todos permaneçam essencialmente os mesmos quando atenderem ao toque de recolher de Nick Fury. Desta forma, os filmes da Marvel arriscam-se a tornarem-se peças sem identidade, meros objetos de uma linha de produção que trabalha para manter o interesse do público aceso. Não há o mínimo de tensão ou sensação de perigo em O Mundo das Trevas - mesmo quando uma ação violenta é cometida sobre Thor, percebe-se na hora que o filme arranjará maneira de reverter as suas consequências.

 

Incrivelmente insípido para uma obra de fantasia, O Mundo das Trevas não consegue aproveitar que o seu universo já foi estabelecido no divertido e equilibrado filme anterior e, apesar de contar aventuras que se passam em mundos fantasiosos, soa terrivelmente derivativo. De Star Wars, O Senhor dos Anéis, Alien/Prometheus e até o primeiro Tron (!), a película suga vários elementos para que a identificação seja rápida e fácil mesmo que estas não contribuam para mais nada que não a constatação da ausência de vitalidade da narrativa. Até uma ideia inventiva como a convergência dos Reinos e os saltos entre vários mundos durante uma batalha é sabotada porque os cenários visitados limitam-se a Londres, Asgard, o tal Mundo das Trevas e as montanhas de gelo vistas no primeiro filme.

 

De resto, é uma benção que Loki traga alguma vida à narrativa (embora não traga nada de novo) porque o vilão com as suas motivações rasas passa completamente ao lado. Tom Hiddleston, aliás, é o único do numeroso elenco que consegue tirar proveito do relativo pouco tempo de antena a que tem direito, já que os nomes sonantes vistos na relação de atores no início deste texto não fazem mais do que figuração de luxo. Entretanto, a química entre Natalie Portman e Chris Hemsworth é praticamente nula e é uma incógnita como a insossa Jane Foster arranca tantos suspiros do Deus do Trovão. Era preferível, portanto, acompanhá-lo ao lado da guerreira Sif (Alexander) e, como esta ainda viverá uns bons milénios em comparação com a humana Jane, é esperar que a terráquea morra de velhice para a deusa se fazer ao piso.

 

Com bons efeitos especiais e um design de produção majestoso (menos mal), Thor: O Mundo das Trevas serve como paliativo para a expectativa para a segunda reunião dos Vingadores, mas é perfeitamente dispensável.

 

PS: há uma cena durante os créditos finais que está relacionada com o próximo filme da Marvel, Guardiões da Galáxia, e ainda outra no final que encerra parte da história.

 

publicado às 18:42

Gravidade

por Antero, em 11.10.13

 

Gravity (2013)

Realização: Alfonso Cuarón

Argumento: Alfonso Cuarón, Jonás Cuarón

Elenco: Sandra Bullock, George Clooney e a voz de Ed Harris

 

Qualidade da banha:

 

Gravidade já seria um filme digno de ser visto – mais: apreciado – numa sala de cinema somente graças às belíssimas e arrebatadoras imagens do planeta Terra visto na perspetiva da sua órbita, pelas ações e eventos em gravidade zero e até como retrato cientificamente apurado do que se passa no espaço (ausência de som, sem oxigénio não existem explosões, etc...). No entanto, isso seria apenas uma experiência meramente sensorial que Alfonso Cuarón eleva a outro nível ao desenvolver um exercício de tensão que deixa os nervos do espectador em frangalhos. Para Cuarón, a Ciência (mesmo que ficcionada) é tão importante como o Drama – e isto é o que basta para criar um sério candidato a melhor filme do ano.

 

Escrito pelo realizador em conjunto com o filho, Gravidade traz dois astronautas numa missão de reparação de uma estação norte-americana que é interrompida quando são atingidos por destroços de um satélite russo e ficam isolados. Com oxigénio limitado, Ryan Stone (Bullock) e Matt Kowalski (Clooney) precisam de encontrar alguma forma de alcançar uma estação espacial chinesa ou morrerão. O que se segue são 90 minutos apavorantes em que testemunhamos a luta dos dois sujeitos contra a brutalidade da natureza.

 

Iniciando-se com um longo plano-sequência (marca registada do realizador) que evidencia a liberdade absoluta de movimentos que a câmara adotará em toda a projeção, Gravidade mostra Cuarón em pleno domínio das suas capacidades: em certos momentos, ele acompanha sem cortes aparentes os atores apenas para, subtilmente, aproximar-se e entrar no seus capacetes e permitir que o espectador assuma os seus pontos de vista. Noutros momentos, ele recorre a cortes secos para acentuar o choque entre a turbulência que ocorre dentro de uma estação e o seu exterior silencioso. O silêncio, aliás, é gerido com mestria já que ouvimos exatamente aquilo que os astronautas ouvem (e percebemos o isolamento a que estão fadados) e, como a destruição ocorre no vácuo, tudo ganha mais impacto pela forma impiedosa que é retratada.

 

Enquanto isso, o recurso ao 3D revela-se dos mais acertados desde que a tecnologia invadiu as salas com o sucesso de Avatar: a sensação de imersão na vastidão do espaço é acentuada ao mesmo tempo que se revela paradoxalmente claustrofóbica – e basta reparar que num momento estamos maravilhados com as imagens da face oculta da Terra para, logo a seguir, nos aterrorizarmos ao ver Stone a girar descontroladamente rumo ao vazio. Por outro lado, é de admirar que o fascínio com os aspetos técnicos nunca tolde a segurança com que Cuarón desenvolve a narrativa uma vez que, por mais belo que seja ver lágrimas ou chamas flutuantes, o que realmente interessa é a situação desesperadora dos dois astronautas.

 

Desta forma, o elenco diminuto consegue a proeza de soar minimamente tridimensional: Clooney deposita toda a confiança no seu reconhecido carisma para demonstrar Matt como alguém experiente e confiável ao passo que Bullock carrega o filme inteiro nas costas com a sua persistência face às suas inseguranças e receios – o que nos leva imediatamente a temer pela sua vida.

 

Com um ritmo sempre em crescendo que só deixa respirar no final da sessão, Gravidade é uma obra assombrosa que só me faz lamentar o tempo que Alfonso Cuarón demora para nos entregar os seus filmaços. Um realizador tão incrível não pode estar tanto tempo parado. E daí talvez seja isto que o torne tão especial.

 

publicado às 04:10

A Gaiola Dourada

por Antero, em 29.08.13

 

La Cage Dorée (2013)

Realização: Ruben Alves

Argumento: Ruben Alves, Hugo Gélin, Jean-Andre Yerles

Elenco: Rita Blanco, Joaquim de Almeida, Roland Giraud, Chantal Lauby, Barbara Cabrita, Lannick Gautry, Maria Vieira, Jacqueline Corado, Jean-Pierre Martins, Alex Alves Pereira

 

Qualidade da banha: 

 

Êxito surpresa em França e a caminho de se tornar o filme mais visto em Portugal este ano, A Gaiola Dourada deve o seu sucesso ao olhar simpático que dirige à comunidade portuguesa por terras gaulesas (e que, de certa maneira, reflete a maior parte da diáspora portuguesa) ao seguir as peripécias de uma série de personagens que, mesmo com as suas peculiaridades, nunca soam como meros artifícios para provocar o riso. É a doçura com que Ruben Alves encara aquele universo que faz com que a narrativa ressoe junto do espectador e torne a película numa agradável experiência.

 

Escrito pelo próprio realizador ao lado de dois colaboradores, A Gaiola Dourada foca-se em Maria (Blanco) e José (Almeida), um casal de portugueses emigrados em França há mais de três décadas. Ela trabalha como porteira num condomínio de uma bairro de Paris e ele trabalha como construtor civil e ambos são vistos pelos patrões e pela família como pessoas trabalhadoras e humildes. Quando recebem a notícia que José herdou uma quinta no Douro, o casal vê o sonho de regressar a Portugal e viver uma vida desafogada mais perto da realidade. No entanto, a decisão deles encontrará vários obstáculos: a irmã de Maria pretende abrir um negócio com ela, a filha do casal começou a namorar com o filho do patrão de José e ninguém no condomínio quer perder os seus valiosos zeladores.

 

Com uma galeria de personagens que abraçam todos os estereótipos atribuídos aos emigrantes, A Gaiola Dourada não permite que estes clichés os definam por inteiro: o filme até transmite a ideia de que são os próprios visados que fomentam esta ideia (os jogos de cartas, o Fado, o futebol, o bacalhau, o jogo da malha), mas não permite que estes resvalem para a caricatura, usando-os a favor da história ao evitar que estes se tornem o centro absoluto da narrativa. Da mesma forma, Ruben Alves delineia os traços gerais das personagens com imensa economia: quando a herança lhes cai do céu, José e Maria mal perdem tempo a idealizar um regresso a Portugal e imediatamente começam a pensar nas implicações que a saída de Paris traria aos demais – o que demonstra o pragmatismo do casal. Ao mesmo tempo, quando José e Maria recebem os compadres num divertido jantar que indica a perceção equivocada de ambas as famílias, José mal consegue disfarçar o desconforto por receber o chefe de trinta anos em sua casa – o que, mais uma vez, dá a entender toda uma vida dedicada à condição de subalterno sem praticamente mostrar nada (neste ponto não posso deixar de referir o hilariante momento em que Solange decide consultar a Wikipedia para se preparar para o referido jantar com a família portuguesa, o que revela o caráter sem noção da sujeita – como se ler um website substituísse a aprendizagem de uma cultura nacional).

 

O elenco do filme é certeiro e injeta imenso coração na história: Rita Blanco, a mais completa das atrizes nacionais, retrata todo o carinho de uma mulher devotada ao trabalho e à família ao mesmo tempo que deixa transparecer uma certa confusão despoletada pela situação; Joaquim de Almeida surge à vontade no papel de pai de família modesto e orgulhoso; Chantal Lauby rouba todas as cenas em que aparece como a despassarada Solange e o resto do elenco composto por franceses e luso-descendentes faz um bom trabalho ao tornar aquela galeria de indivíduos cativantes e minimamente interessantes. Enquanto isso, o design de produção faz um trabalho discreto mas competente: reparem como a casa dos Ribeiro está desprovida de grandes luxos ou espaços amplos como as demais do prédio, mas evoca uma familiaridade e um calor humano mais do que apropriado àquela família – sem esquecer as janelas que estão protegidas com uma grade exterior, o que faz um belo e curioso reflexo do título do filme.

 

No entanto, nem tudo são rosas: a simplicidade da história acaba por jogar em desfavor, já que esta se mostra sem grandes ambições – uma constatação que surge nalguns tópicos desaproveitados ou abandonados a meio como o facto de Pedro ter vergonha da sua ascendência portuguesa ou a discussão que Paula tem com os pais no tal jantar se encerrar com uma ação grave por parte de José que não gera grandes consequências. Além disso, o argumento investe numa zanga absurda entre Paula e o namorado que era resolvida com duas frases, mas que é usada para criar um conflito artificial que os separe e torne a reunir no fim da projeção. Nada disto se compara, porém, à gratuita e embaraçosa participação especial de Pauleta (sim, esse Pauleta!) que, com meros dois diálogos, prova que como ator é um excelente futebolista.

 

Relativamente curto e ágil nos seus pouco mais de 90 minutos, A Gaiola Dourada não é mais do que uma comédia de situação povoada por seres que provocam imediata empatia no público e que traça um retrato sensível e amigável sobre os emigrantes. Não é nenhuma obra-prima, mas isso também não lhe era pedido.

 

publicado às 00:16

Homem de Aço

por Antero, em 28.06.13

 

Man of Steel (2013)

Realização: Zach Snyder

Argumento: David S. Goyer

Elenco: Henry Cavill, Amy Adams, Michael Shannon, Russel Crowe, Kevin Costner, Laurence Fishburne, Diane Lane, Antje Traue, Ayelet Zurer

 

Qualidade da banha: 

 

NOTA: este texto discute detalhes importantes sobre o filme (entre eles, o final), por isso aconselho a sua leitura após a visualização do mesmo. É por vossa conta e risco! Depois não digam que eu não avisei...


O grande mérito de Christopher Nolan na recente trilogia de Batman foi abandonar a tom fantasioso de Tim Burton e o Carnaval de Ovar de Joel Schumacher e devolver o super-herói às suas raízes mais sombrias ao dar uma ambientação mais verosímil a Gotham City (que refletia problemas das metrópoles atuais) e dissecar a fundo na psique conturbada de Bruce Wayne. A proposta tinha tudo a ver com a personagem: não se tratava apenas de um novo ponto de vista sobre Batman, mas aquilo era a sua essência – e quem não tinha os filmes de super-heróis em grande conta (um grupo onde não me incluía) percebeu ali que o género tinha mais profundidade, drama e engenho do que se suponha à primeira vista.

 

Contudo, o que funcionou maravilhosamente com o Cavaleiro das Trevas não significa necessariamente que vá funcionar com outros heróis mascarados. Basta recuar ao ano passado e ver que mais drama, mais soturnidade e mais negrume reduziram o fascinante Peter Parker a um sujeito desinteressante e enfadonho – e agora a mesma receita é aplicada ao Super-Homem nesta espécie de Superman Begins que traz a assinatura do menino bonito da Warner, Zach Snyder, ao lado de Christopher Nolan e David S. Goyer, nada mais nada menos que as mentes por detrás da reformulação de Batman. O resultado, infelizmente, está mais paraO Fantástico Homem-Aranhae menos para (esse sim fantástico)O Cavaleiro das Trevas.

 

Ao contrário de Batman (cuja reputação cinematográfica andava pelas ruas da amargura depois do hediondo Batman e Robin), não havia nada de errado com a abordagem anterior sofrida pelo Super-Homem. Sim, Super-Homem: O Regresso falhava no quesito da ação espetacular requerida neste tipo de obras e em não fornecer um vilão à altura dos poderes do herói (e, invariavelmente, limitava-se a Lex Luthor e à kriptonita), mas ao menos não desvirtuava a personagem e funcionava maravilhosamente como homenagem a um filme (o Super-Homem de Richard Donner) que já de si era uma carta de amor a uma das referências da cultura popular do último século. Agora não: em tempos mais cínicos o Super-Homem imortalizado por Christopher Reeve não tem lugar e, na ânsia de enquadrá-lo naquilo que Hollywood infelizmente perceciona como os desejos das plateias atuais, os produtores recriam um herói mais sombrio, afundado em dilemas e com a devida carga histérica de ação. Nada contra esta ideia, mas ao querer afastar-se tanto do que estava (e está) estabelecido sobre Super-Homem, Homem de Aço acaba por ser uma obra problemática e sisuda até ao tutano.

 

Iniciando-se numa Krypton perto da destruição, Homem de Aço acompanha os esforços de Jor-El (Crowe) em enviar Kal-El (Cavill), o seu filho concebido naturalmente numa sociedade tecnologicamente avançada e estratificada em que cada bebé é criado artificialmente com uma função, para a Terra de modo a salvar a sua vida e a herança da sua raça. Anos depois, Kal-El torna-se Clark Kent pela mão dos seus pais adotivos, Jonathan (Costner) e Martha (Lane), e vive angustiado por um constante sentimento de não-pertença a uma raça que não é a dele, questionando a origem dos seus poderes, que gradualmente se têm fortalecido. Ao mesmo tempo que descobre a finalidade da sua existência, o planeta é ameaçado pelo General Zod (Shannon), um terrorista de Krypton que havia sido banido antes da sua destruição, e que levará Kent a assumir de vez o papel de protetor do planeta que o acolheu.

 

Dominado por uma palete de cores tristes que variam entre o cinzento e o castanho, Homem de Aço é um filme drenado de qualquer resquício de vida ou alegria, já que não há um único momento de leveza ou bom humor. Aqui o assunto é ser sério. Tão sério que não há espaço para uma Lois Lane (Adams) indiferente a Clark e derretida pelo Super-Homem: em pouco tempo, a aguerrida jornalista descobre a identidade do nosso herói e auxilia-o na sua busca. É como se Goyer nos dissesse que seria absurdo demais que Lois fosse tão tapada ao ponto de não reconhecer ambos (o que é verdade) e mais vale abordar o assunto de outra forma (concordo), mas o certo é que a deliciosa dinâmica entre a jornalista e o herói desaparece e é substituída pelo, bem... vácuo.

 

Porém, se o filme prefere contestar determinados absurdos também não tem receio em apostar noutros tantos, como o facto de Lois aparecer em todo o lado: desde Smallville a Metrópolis (que teve a sua denominação genérica típica dos comics legendada no filme como... Metrópole!) até ser convidada inexplicavelmente a subir à nave de Zod ou acompanhar missões militares, a moça deve ser também uma refugiada de Krypton com poder de teletransporte. Enquanto isso, Jor-El dá-nos a resposta para a eterna questão "haverá vida para além da morte?" ao transformar-se numa espécie de Obi-Wan Kenobi interativo que não apenas serve de guia espiritual para o filho como também interage com seres humanos e aparelhos. E o que dizer da falta de bom senso do plano de Zod em querer destruir a atmosfera terrestre em prol da kriptoniana quando na Terra os vilões seriam semideuses e em Krypton seriam normais?

 

Apostando a sua primeira metade em desenvolver a trajetória de Kal-El, Homem de Aço assume o caráter de narrativa não-linear ao pontuar a sua história com flashbacks do crescimento de Clark em Smallville nos quais o seu processo de autodescoberta é rebatido por Jonathan e Martha como forma de proteger o filho do pânico que este causaria nos humanos ao confrontá-los com o desconhecido. É nestes momentos que o filme mostra como poderia ter sido excelente graças às sensíveis interpretações de Kevin Costner e Diane Lane como pais carinhosos e que tentam aconselhar Clark da melhor maneira que sabem. Isto tudo até à ridícula cena onde Jonathan é sugado por um tornado e Clark nada faz a pedido deste – um momento tão arbitrário e escusado que existe apenas para semear o conflito entre os deveres e os limites de alguém com poderes extraordinários, o que não estaria mal não fosse o caso de que qualquer pessoa, naquela situação, tentaria fazer algo para ajudar e o nosso herói nem isso.

 

No entanto, os bons momentos proporcionados pela infância de Clark não compensam a chatice dos eventos "atuais" onde somos obrigados a acompanhar lérias sobre a sociedade de Krypton, lições de moral do Holograma-El e as tecnicalidades sobre um Codex e uma Criadora qualquer. Mas para não esquecermos que isto é coisa séria e profunda, há que retratar os óbvios paralelismos entre a mitologia do Super-Homem e a figura de Cristo (sujeito superpoderoso que vem dos céus enviado pelo pai para nos salvar), algo que Snyder retrata com subtileza inigualável ao mostrar o herói duas vezes na posição da cruz, ao recorrer a diálogos expositivos ("Vivo aqui há 33 anos...") e a fazer com que ele se apresente aos militares diante do Sol e suspenso no ar tal e qual uma divindade religiosa. Até um momento que deveria ser arrebatador como o primeiro voo é sabotado pela banda sonora repetitiva e enjoativa de Hans Zimmer que, com os seus arranjos eletrónicos e sonoridade simplista, mostra o reputado compositor na sua pior forma.

 

Com um elenco que parece proibido de se rir de si mesmo tamanha é a seriedade com que encaram o universo onde residem, Homem de Aço traz Henry Cavill como um Clark Kent de expressão cansada (o que reflete a sua jornada pessoal) e que transpira confiança quando pode usar os seus poderes (principalmente depois de assumir-se como Super-Homem) o que demonstra o sucesso da sua adequação. Entretanto, o talentoso Michael Shannon chama a atenção pela sua entrega ao papel, construindo um vilão de trejeitos exagerados numa interpretação que engole o cenário, os atores, a tela e quiçá os óculos 3D. Já Amy Adams é desperdiçada como Lois Lane, uma vez que a sua graça vem da química com o Clark Kent estabelecido em Metrópolis e não da sua interação com o Super-Homem e Russel Crowe empresta dignidade e autoridade a Jor-El. Por outro lado, o staff do Daily Planet, encabeçado por Laurence Fishburne, não causa impressão alguma nem é convenientemente desenvolvido para que nos preocupemos com eles – uma constatação que chega da forma mais deprimente quando o filme perde tempo com eles a tentar escapar à destruição promovida pelos vilões.

 

E aqui chegamos ao ponto que poderia salvar Homem de Aço da mediocridade, mas que acaba por enterrá-lo de vez: as cenas de ação. Tirando um ou outro embate, as grandes sequências de lutas e destruição ficam reservadas para os últimos 45 minutos do filme. Usar o termo destruição é um eufemismo: o que ocorre é a devastação total. Prédios caem, veículos são esmagados, estradas são desfeitas, muitas explosões e... milhares de vítimas? O filme ignora. Tem a sua piada ver semideuses a combaterem no melhor estilo Dragon Ball Z (juro!), mas ao terceiro ou quarto desabamento já estava saturado da mesmice de sempre. A sequência alonga-se até o centro de Metrópolis virar pó e é estranho (para não dizer revoltante) perceber que, de tanto querer proteger a cidade, o Super-Homem acaba por ser diretamente responsável por praticamente arrasá-la e, no processo, matar milhares de pessoas. Ele só se preocupa verdadeiramente em salvar a prolífera Lois Lane do meio do caos e, claro, uma família ameaçada pela visão de calor de Zod – o que leva o Super-Homem a matá-lo a sangue frio. Isso mesmo: o maior herói de todos os tempos, o símbolo da esperança para a raça humana acaba por ser um assassino. A própria condução desta cena leva à impressão que esta abordagem é tão errada já que, com certeza, haveria formas mais eficazes e menos cruéis de resolver a situação. Mas depois de Metrópolis ser pulverizada à boa maneira de Michael Bay, eu já nem digo nada.

 

Longo, monótono e inchado de efeitos especiais cujos enquadramentos e cortes rápidos de Snyder mal deixam discernir (apesar de um ou outro raccord bem esgalhado, como a passagem da queda da nave para o navio no meio do oceano), Homem de Aço é também UM DOS FILMES MAIS BARULHENTOS QUE JÁ ASSISTI! E se acham esta frase em maiúsculas incomodativa que chegue, garanto que isto não chega aos calcanhares de ter de ouvir uma película onde até um abrir de olhos tem direito a um ultra dramático *POM!*. Porque, sabem como é, tudo agora tem de ser dramático, introspetivo e denso. A leveza e a diversão de uma aventura à moda antiga são atiradas borda fora para dar lugar a um visual sombrio, heróis desnecessariamente violentos e emoções à flor da pele tratadas com mão pesada.

 

Ao final de Homem de Aço, com os cidadãos de Metrópolis arrebatados e orgulhosos do seu "salvador", veio-me à lembrança um dos diálogos de O Cavaleiro das Trevas, mas com as devidas alterações: ele não é o herói que eles precisam de momento, mas é aquele que merecem.

 

publicado às 01:43

Além da Escuridão: Star Trek

por Antero, em 06.06.13


Star Trek Into Darkness (2013)

Realização: J. J. Abrams

Argumento: Roberto Orci, Alex Kurtzman, Damon Lindelof

Elenco: Chris Pine, Zachary Quinto, Zoe Saldana, Karl Urban, Simon Pegg, John Cho, Anton Yelchin, Benedict Cumberbatch, Bruce Greenwood, Peter Weller, Alice Eve
 

Qualidade da banha:

 

Ao escrever sobreStar Trekhá quatro anos referi que a maior vantagem daquela reinvenção (e o termo ajusta-se na perfeição) era ser acessível tanto aos fãs de longa data que eram bafejados com uma lufada de ar fresco como aos recém-chegados que tinham ali uma porta de entrada para décadas e décadas de mitologia distribuídas por filmes, séries, livros e outras plataformas. Um novo universo era criado através do recurso das viagens no tempo, o que, além de demonstrar respeito pelo que já fora estabelecido no cânone da série, implicava que, a rigor, tudo poderia acontecer dali em diante. Por adorar tanto o filme de 2009 (e admito sem problemas: Star Trek nunca foi a minha praia), tinha um enorme receio que J. J. Abrams e companhia não fossem capazes de aguentar o pique e desperdiçassem todo o potencial gerado pela aquela obra – e posso assegurar que estes temores são deitados por terra diante de Além da Escuridão, uma aventura espetacular que faz justiça ao legado deixado por Gene Roddenberry.

 

Escrito por Damon Lindelof juntamente com os mesmos argumentistas do filme anterior, Além da Escuridão agarra o espectador e atira-o para uma sequência de ação frenética logo no início – e nunca mais o larga já que as cenas de ação sucedem-se a um ritmo alucinante. Depois de cumprir uma missão no planeta Nibiru e desrespeitar os regulamentos da Frota Estelar, o agora Capitão Kirk (Pine) é destituído do seu posto e a Enterprise passa a ser comandada pelo seu antigo mentor. É então que um terrorista que dá pelo nome de John Harrison (Cumberbatch) leva a cabo vários atentados contra a Federação e cabe à equipa da USS Enterprise descobrir o seu rasto e detê-lo a todo o custo.

 

Beneficiado pelo facto de já ter devidamente contextualizado as suas personagens, Além da Escuridão expande e enriquece o seu universo obrigando a tripulação da Enterprise a encarar novos desafios que, por sua vez, desenvolvem a dinâmica dos seus elementos. Se o capítulo anterior ancorava a sua narrativa na temática da filiação e das relações pais-filhos, esta sequela vai mais além ao determinar a tripulação como um verdadeiro núcleo familiar e, a partir daí, remeter para temas como a responsabilidade e a maturação emocional requeridas a qualquer membro de um grupo. Neste particular, Kirk assume o papel do líder (ainda) inexperiente que comete erros de julgamento e cuja impulsividade só é atenuada pelos relacionamentos criados com aqueles que o rodeiam, nomeadamente o emotivo Dr. Leonard McCoy (Urban) e o extremamente racional Spock (Quinto). Há uma cena em que estes discutem uma certa decisão e Abrams filma-os sentados em triângulo, o que não poderia ser mais apropriado visto que a dinâmica deste trio é a alma da geração clássica d' O Caminho das Estrelas.

 

E por falar na série original, convém dizer que o argumento de Além da Escuridão encontra tempo para incluir alegorias políticas que refletem questões contemporâneas – e é este lado mais "cerebral" e ambicioso de Star Trek (por oposição à fantasia de Star Wars – que eu amo do coração) que a torna tão respeitada e lembrada após tanto tempo. Desta forma, o filme questiona a validade de uma ação violenta contra uma "nação" vizinha baseada em dados falíveis como resposta a um ato terrorista ou mesmo o recurso a armas de destruição em massa como método de retaliação. Que estas questões venham embrulhadas num pacote de diversão requisitada ao típico blockbuster de Verão em nada desmerece a película: em vez de servirem como desculpa para explosões e tiroteios, estas questões são discutidas com inteligência e acabam por serem as catalisadoras de todos os acontecimentos, culminando num momento dramático em que o próprio Kirk admite que falhou.

 

Sem a frescura e o arrojo da obra que a antecedeu, Além da Escuridão conta com um vilão bem mais interessante que o Nero de Eric Bana: o John Harrison do excelente Benedict Cumberbatch (o Sherlock dasérie homónima) assume-se como uma ameaça letal à Enterprise com a sua voz colocada e sibilante e uma postura que exala frieza e uma perspicácia fora do normal. Entretanto, Chris Pine e Zachary Quinto mostram que nasceram para estes papéis tamanha é a naturalidade com que incorporam personagens míticas e reproduzem a riquíssima interação entre Kirk e Spock. O resto do elenco também se encontra em boa forma ainda que um pouco apagados diante dos protagonistas e do antagonista, embora a história encontre tempo e dê que fazer a cada um deles (e o timing cómico de Simon Pegg continua impecável).

 

Com um ritmo frenético (a meia hora final é um turbilhão de emoções) e momentos de bom humor, Além da Escuridão é simplesmente irrepreensível nos seus aspetos técnicos e visualmente estonteante: desde o planeta com a sua vegetação avermelhada em contraste com um mar impossivelmente azul ao centro de um vulcão em erupção, passando por uma Londres futurista e verosímil, o filme nunca deixa de ser um festim para os olhos (e, felizmente, J. J. Abrams mostra-se mais contido nos seus característicos flares). No entanto, é no equilíbrio entre o clima de aventuras e o peso dramático da narrativa que Abrams realmente se destaca, conseguindo harmonizar momentos mais introspetivos com situações trepidantes – tudo isto pontuado com uma banda sonora sensacional de Michael Giacchino, somente o melhor compositor da atualidade.

 

Incluindo inúmeras referências à mitologia da série que provocará pequenos orgasmos nos fãs, Além da Escuridão consegue a proeza de reutilizar ideias de outros capítulos (um em especial, mas referi-lo pode contar como spoiler – embora a Internet se tenha encarregue de destruir a surpresa) sem parecer uma mera cópia disfarçada de homenagem e usá-las em benefício da sua narrativa ao intensificar os arcos dramáticos de Kirk e Spock. Que Star Trek não vá onde nenhum homem jamais esteve não é problemático desde que a série se mantenha tão excitante e intrigante como tem estado desde que Abrams e companhia operaram uma revolução na velhinha USS Enterprise.

 

publicado às 20:57

A Ressaca - Parte III

por Antero, em 31.05.13


The Hangover Part III (2013)

Realização: Todd Phillips

Argumento: Todd Phillips, Craig Mazin

Elenco: Bradley Cooper, Ed Helms, Zach Galifianakis, Ken Jeong, John Goodman, Justin Bartha, Heather Graham, Mike Epps, Melissa McCarthy
 

Qualidade da banha:

 

A Alcateia está de volta, mas antes nunca tivesse voltado. Depois de umprimeiro filmetresloucado e divertidíssimo veio a inevitávelsequelaque mais não era do que uma cópia descarada em que mudou-se o cenário (de Las Vegas para Banguecoque) e pouco mais, com resultados fraquíssimos. Mas como tudo o que dá lucro é para continuar, vemos em A Ressaca - Parte III Hollywood a fazer o que faz melhor: espremer a teta de uma vaca até à exaustão. Pena é que o animal se encontre anémico – e se acham esta analogia inapropriada, esperem para ver a que os pobres animais deste filme são sujeitos ao longo de exasperantes 100 minutos.

 

Após uma introdução que remete para Os Condenados de Shawshank (o que não é de todo mau), A Ressaca - Parte III traz a decapitação de uma girafa. Sim, leram bem: uma girafa é decapitada logo aos 5 minutos. Os detalhes do animal estar ali pronto a ver saltar-lhe a cabeça é algo que o argumento não se preocupa em responder e basta que uma personagem se refira ao evento com um "Quem se importa?" para que cresça no espectador o receio de que esta Parte III seja uma mera colagem de cenas que alguma mente insana achou adequadas ao conceito de "comédia" – um receio que se vem a confirmar. Não lamentem, porém, o destino reservado à girafa durante muito tempo, já que, mais à frente, o filme mostra cães a serem drogados e galos a serem baleados. Um deles até tem direito a uma morte mais compassiva: é sufocado com uma almofada. Sim, leram bem: um galo é sufocado com uma almofada neste filme.

 

Reparem que ainda nem me debrucei sobre a premissa, mas isso é intencional. Atentem no seguinte, se tiverem coragem para tal: desta vez, o grupo reúne-se para levar Alan (Galifianakis) para um centro de reabilitação, mas envolve-se numa enorme confusão quando são interpelados pelo mafioso Marshall (Goodman) que rapta Doug (Bartha) e exige que os restantes encontrar o paradeiro de Leslie Chow (Jeong), o criminoso asiático visto nos dois capítulos anteriores, e que recuperem as barras de ouro que este tem na sua posse. Isto levará Alan, Phil (Cooper) e Stu (Helms) ao México e Las Vegas, mas desta vez sem bebedeira nem ressaca à vista. É verdade: esta Parte III não repete a estrutura dos outros dois (o que seria um erro), mas não oferece nada de novo. Nem como comédia resulta, uma vez que está mais para um heist movie recheado de cenas violentas que os produtores tentam passar como "comédia".

 

Duvidam? Há a girafa e os galos, um pai morto, um monte de mafiosos assassinados – só o raio da vaca é que não morre porque mantê-la viva é a única coisa que interessa. Ao elenco não é pedido que estejam bem ou que sejam engraçados, eles apenas precisam de estar lá. Bradley Cooper percorre a projeção envergonhado e com ar de "vamos despanhar isto que eu já sou nomeado para os Oscars!", Ed Helms foi só lá para receber o cheque e Justin Bartha é posto de lado logo no primeiro terço (o que já se tornou uma sádica tradição). Quanto a Zach Galifianakis, o destaque absoluto do primeiro filme, aqui deixa a leveza infantil de parte e aposta na debilidade mental como traço único da sua personalidade – mas nada que chegue aos pés da chatice proporcionada por Ken Jeong que, repetindo sempre o mesmo papel irritante, só funciona em doses pequenas e que, aqui, é colocado no centro de tudo e ganha um protagonismo desmesurado. Já as participações pequenas da bela Heather Graham e da ótima Melissa McCarthy são um verdadeiro desperdício, mas sempre dá para desviar a atenção do caos que as rodeia que não poupa nem mesmo John Goodman que investe num vilão demasiado sério para este tipo de filme.

 

O maior pecado de A Ressaca - Parte III é que este simplesmente não é engraçado e isto nada tem a ver com a crueldade animal ou o negrume da história: os Farrelly já mostraram que conseguem fazer rir com o primeiro e os Coen cimentaram as suas carreiras com o segundo. Phillips parece mais interessado em ultrapassar a hora e meia regulamentar e correr a depositar o cheque, tal como os restantes envolvidos. Que o filme não tenha ponta por onde se lhe pegue, não inspire risos ou tente criá-los através do choque gratuito e seja um aborrecimento do início ao fim é algo que simplesmente não lhes interessa. É preciso chegar a meio dos créditos finais para ver algo remotamente parecido com algo que uma longa-metragem intitulada A Ressaca prometeria, mas, a esse ponto, já era eu que berrava "Quem se importa?".

 

publicado às 00:49

O Grande Gatsby

por Antero, em 24.05.13


The Great Gatsby (2013)

Realização: Baz Luhrmann

Argumento: Baz Luhrmann, Craig Pearce

Elenco: Leonardo DiCaprio, Tobey Maguire, Carey Mulligan, Joel Edgerton, Elizabeth Debicki, Isla Fisher, Jason Clarke
 

Qualidade da banha:

 

Publicado em 1925 no auge da "Era do Jazz", O Grande Gatsby de F. Scott Fitzgerald só ganhou reconhecimento público décadas depois pela sua acutilante desconstrução do propalado "Sonho Americano" e por criticar os excessos da alta sociedade dos Loucos Anos Vinte (e cujas alfinetadas podem ser aplicadas a qualquer outra época). Assim, não deixa de ser espantoso como uma obra tão famosa seja tão pouco relevante no Cinema: tirando um telefilme, foram somente três adaptações sem relevância para o grande ecrã - sendo a mais conhecida a sonolenta longa-metragem de 1974 com Robert Redford e Mia Farrow nos principais papéis. Este novo filme de Baz Luhrmann eleva a contagem para quatro e é uma pena que a qualidade das mesmas também não sofra uma melhoria.

 

Seguindo de perto a história de Fitzgerald, O Grande Gatsby começa logo mal ao iniciar-se num sanatório onde o depressivo e alcoólico Nick Carraway (Maguire) relata como conheceu um homem inspirador chamado Gatsby – um prólogo inexistente no livro e que só foi acrescentado para fazer uma óbvia rima com o desfecho. A narrativa recua, então, para o verão de 1922 quando Nick chega a Long Island e arrenda uma pequena casa ao lado da luxuosa mansão do enigmático Jay Gatsby (DiCaprio). Ao mesmo tempo, Nick reaproxima-se da sua prima Daisy (Mulligan) e do seu marido, Tom (Edgerton) e, com o decorrer do verão, trava também conhecimento com Gatsby ao ser convidado para uma das suas festas - sem saber que este e a sua prima tiveram uma relação amorosa uns anos antes.

 

Com todos os excessos que fizeram de Moulin Rouge uma experiência tão arrebatadora e que falharam miseravelmente em Austrália, O Grande Gatsby traz o virtuosismo, a panóplia visual e o majestoso trabalho de design de produção que já se tornaram a assinatura de Luhrmann, mas o que realmente impressiona é a gritante falta de energia da narrativa. Amante do espetáculo no seu sentido mais literal, Lurhmann incha a projeção com efeitos especiais, movimentos de câmara improváveis (obviamente feitos por computador) e uma montagem frenética que sugam qualquer peso dramático que as trajetórias de Gatsby, Daisy e Nick pudessem evidenciar - e para comprovar isto basta reparar como o passado de Gatsby e a sua ascensão económica são revelados quase por acaso e sem grande profundidade e, só mais tarde, o facto é encarado pelos demais com absoluta seriedade. Já o desencanto de Nick com o luxo e a hipocrisia que o rodeia soa súbito demais, visto que em nenhum momento anterior ele se mostrara desagradado com a opulência à sua volta – e mesmo o seu tão admirado Gatsby não se furtava de ostentar a sua riqueza.

 

É claro que com personagens tão parcamente desenvolvidas nenhum elenco faz milagres: DiCaprio só funciona enquanto o seu Gatsby ainda é um enigma e depois mostra-se desconfortável com o avançar da história; Maguire atua como observador e tem um papel tão passivo na narrativa que praticamente poderia ser excluído sem grandes danos; e a talentosa Carey Mulligan é um autêntico peso morto em cena, sem nenhuma química com DiCaprio ou qualquer um que a acompanhe (o que me levou a questionar a sanidade de Gatsby por estar perdidamente apaixonado por uma pessoa assim). Já o restante do ótimo elenco é desperdiçado em papéis que não deixam impressão alguma.

 

Contudo, é mesmo Baz Lurhmann que se espalha ao comprido. Todo o apuro técnico em desfavor da narrativa acaba por transparecer a triste conclusão que ele glorifica aquilo que Fitzgerald condenava: os excessos patrocinados pela prosperidade económica. Além disso, a sua opção de incluir músicas contemporâneas (de autores como Jay-Z ou Lana Del Rey) não tem qualquer justificação e atiram imediatamente o espectador para fora do filme. Outra opção sem nexo é a forma como ele "potencializa" o efeito tridimensional através de palavras que surgem na tela enquanto são narradas, o que, além de ridículo (eu vi o filme em 2D), não tem qualquer propósito narrativo. E para uma história sem nenhum teor fantasioso, não é estranho ver como aquele "Vale das Cinzas" - que realmente existiu - parece saído de um filme de... Baz Luhrmann?

 

Visualmente exuberante, mas dramaticamente vazio, O Grande Gatsby é, em última instância, um falhanço. Com certeza que se trata de um regalo para os olhos, mas não deixa de ser um falhanço.

 

publicado às 00:17

Homem de Ferro 3

por Antero, em 13.05.13


Iron Man 3 (2013)

Realização: Shane Black

Argumento: Drew Pearce, Shane Black

Elenco: Robert Downey Jr., Gwyneth Paltrow, Don Cheadle, Guy Pearce, Rebecca Hall, Jon Favreau, Ben Kingsley
 

Qualidade da banha:

 

O sucesso de Homem de Ferro nos cinemas está inegavelmente associado a Robert Downey Jr.. Ator extremamente talentoso, Downey Jr. ensombrou os elogios do início da sua carreira ao mergulhar na dependência nas drogas, com a agravante que, apenas há 10 anos, era considerado veneno de bilheteira. Até que veio a aposta arriscada em Homem de Ferro e que se revelou um imenso sucesso, explodindo o Universo Marvel nos cinemas. Convém ter isto presente já que, chegado ao terceiro capítulo (mais a participação emOs Vingadores), Tony Stark sobrevive graças ao talento do seu intérprete que, mesmo no piloto automático (culpa do argumento, mas já lá vamos), revela-se sempre acima do que o rodeia. E, em Homem de Ferro 3, é o que basta.

 

Escrito pelo estreante Drew Pearce e o realizador Shane Black (que retoma a colaboração com Downey Jr. depois do excelente e pouco visto Kiss Kiss Bang Bang), este novo filme traz Tony Stark abalado com os acontecimentos de Os Vingadores: sofrendo de crises e insónia, Stark afunda-se no trabalho como forma de escape do seu quotidiano, o que desgasta a sua relação com Pepper Potts (Paltrow). É neste contexto que surge a ameaça do Mandarim (Kingsley), um terrorista determinado a atacar os EUA pelas suas ações no Médio Oriente, enquanto Stark também tem de lidar com a aparição do vírus EXTREMIS - cujo desenvolvimento tem ligação com o seu passado.

 

Como em tantas terceiras partes de filmes com super-heróis, Homem de Ferro 3 traz mais vilões, mais perigos, mais recursos e obstáculos pessoais que carregam no drama das personagens - aspetos aos quais não me oponho desde que sejam bem trabalhados. No entanto, a leveza com que tudo é retratado suga qualquer tensão existente na narrativa: se antes tínhamos tópicos minimamente complexos e interessantes (para um blockbuster, entenda-se) como o facto de Stark ser atacado pelas armas que financiara ou as investidas do governo, sob a bandeira da segurança nacional, querer apropriar-se da tecnologia alheia, aqui temos uma cena onde James Rhodes (um apagado Don Cheadle) invade uma caserna no Paquistão e que é desenvolvida com efeitos cómicos. Outro exemplo são os inverosímeis ataques de ansiedade que acometem Stark que são tratados como alvo de risadas e que surgem apenas quando convenientes, sendo descartados logo de seguida.

 

Com um argumento com mais furos que uma peneira (Como funciona realmente o vírus EXTREMIS? Porque raio os seres infetados explodem sem deixar marcas? E porque motivo Stark só recorre às armaduras de reserva no clímax quando estas teriam dado um jeitaço ao longo da narrativa?), Homem de Ferro 3 até toma a opção corajosa de deixar Tony Stark sem grandes recursos por bastante tempo, o que nos levaria a admirar o seu intelecto para contornar as adversidades – isto, claro, até percebermos que a sua perspicácia dá pelo nome de deus ex machina. E o que dizer da preguiça do filme ao encenar a traição de um governante máximo dos EUA ao mostrar rapidamente um familiar seu sem um dos membros inferiores e que poderia ser um dos beneficiados com o EXTREMIS... caso vivêssemos num mundo onde próteses anatómicas nunca tivessem sido inventadas? E não esquecer o pirralho que auxilia Stark num vilarejo do interior que, mesmo divertido, é tão crânio em mecânica que me faz pensar que Stark não só é dos homens mais ricos do planeta como também um dos mais sortudos.

 

Espetacular nos seus aspetos técnicos (o mínimo para uma superprodução), Homem de Ferro 3 conta com sequências de ação dirigidas com segurança por Black, com destaque para o ataque à mansão Stark que encontra novas e inventivas soluções para a armadura de Stark, bem como o resgate de uma dúzia de pessoas em queda livre. Já a batalha final é sabotada pela sua boa ideia de trazer várias armaduras contra os vilões, visto que a sequência torna-se caótica por ter de acompanhar tantos intervenientes – e a montagem confusa não nos permite nem mesmo discernir a geografia do local e a posição de uns em relação aos outros (já a troca constante de armaduras por Stark é uma boa tirada, uma vez que seria ridículo que ele se limitasse apenas a uma com tantas ao seu dispor).

 

No entanto, mesmo com tantos problemas, Robert Downey Jr. carrega o filme nas costas com o seu carisma e humor depreciativo e há cenas no filme que dá para notar que foram escritas unicamente para que Downey Jr. pudesse brilhar - e praticamente todos saem a beneficiar com isto: Gwyneth Paltrow mostra-se mais à vontade como Pepper, Guy Pearce estabelece-se como um vilão à altura (as suas motivações e ações são outro problema do argumento) e diverte-se a valer como Aldrich Killian e até Paul Bettany, apenas com a voz, faz uma boa parelha com o protagonista. Apenas Rebecca Hall sai desperdiçada como um velho interesse romântico de Tony, mas é mesmo Ben Kingsley que merece ser comentado por fazer do Mandarim o mais surpreendente e improvável dos supervilões – e notem que o filme planta com cuidado as pistas da sua verdadeira natureza.

 

Beneficiado por não ser um preparativo para o próximo tomo da Marvel, o que lhe permite concentrar-se na sua própria estrutura (embora esta não esteja isenta de falhas), Homem de Ferro 3 demonstra a qualidade decrescente das aventuras do divertido Tony Stark e é bom que os produtores tenham isto em mente e alheiem-se dos fabulosos resultados de bilheteira (oh, utopia!). O carisma de Robert Downey Jr. não faz milagres.

 

PS: há uma cena após os créditos que dá sentido à narração que abre e fecha o filme.

 

publicado às 23:48

Os filmes dos Oscars (Parte 1)

por Antero, em 18.02.13


00:30 A Hora Negra

Zero Dark Thirty (2012)

Realização: Kathryn Bigelow

Argumento: Mark Boal

Elenco: Jessica Chastain, Jason Clarke, Jennifer Ehle, Kyle Chandler, Édgar Ramírez, Harold Perrineau, Mark Strong, Joel Edgerton, James Gandolfini
 

Qualidade da banha:

 

O novo projeto de Kathryn Bigelow ao lado do argumentista Mark Boal (ambos galardoados com o Oscar por Estado de Guerra) estabelece-os de vez como uma dupla a ter em conta no panorama de Hollywood. Documentando os anos que uma unidade da CIA passou na caça de Osama bin Laden, 00:30 A Hora Negra poderia ser uma obra ufanista sobre a capacidade militar dos norte-americanos e a hipócrita postura de “cowboy do Mundo” que marcou a presidência de George W. Bush.

 

Poderia ser assim, mas não é: o que interessa a Bigelow não é tanto o objetivo em si (toda a gente sabe como o filme acaba) e sim o todo processo e as consequências em todos os envolvidos, principalmente na protagonista Maya (excelente Jessica Chastain) que com o tempo desenvolve uma obsessão em levar a missão até ao fim. Desta forma, 00:30 A Hora Negra desenvolve-se mais como um thriller de investigação e menos como um filme de ação frenética. Mas uma investigação minimamente plausível e nada cinematográfica: Maya e os seus colegas erram, duvidam, esperam por decisões, encontram becos sem saída e o caso sofre avanços e recuos. E, claro, sofrem baixas – tanto físicas como psicológicas.

 

O filme tem sido rodeado de polémica graças às suas cenas de tortura levadas a cabo por agentes da CIA – e mesmo que ele deixe bem claro que a mesma não levou a resultados eficazes, ainda há quem as veja como a exaltação de um método para obter informações valiosas esquecendo-se que a forma seca e direta com que Bigelow as encena não só respeita a dura realidade bem como permite que o espectador projete nelas a sua opinião pessoal. Sem mais delongas, está aqui o primeiro grande filme do ano.

 

 


Django Libertado

Django Unchained (2012)

Realização: Quentin Tarantino

Argumento: Quentin Tarantino

Elenco: Jamie Foxx, Christoph Waltz, Leonardo DiCaprio, Kerry Washington, Samuel L. Jackson, Walton Googins, James Remar, Don Johnson

 

Qualidade da banha:

 

Tarantino ama Cinema. Mais: ele ama o seu conhecimento sobre Cinema – e não hesita em demonstrá-lo a cada obra sua. Mas não estamos a falar daquele Cinema mais comercial, acessível e unânime: Tarantino é uma enciclopédia de géneros obscuros, esquecidos e malfadados e em Django Libertado ele reúne o western spaghetti com o blaxploitation típico dos anos 70 numa história de vingança (um tema caro ao realizador) situada em 1858 no sul dos Estados Unidos onde um escravo livre (Jamie Foxx) une-se a um caçador de recompensas alemão (Christoph Waltz, a provar que brilha mais nas mãos de Tarantino) no resgate da esposa do primeiro do cruel e carismático dono de uma plantação Calvin J. Candie (Leonardo DiCaprio, enérgico no papel do vilão ensandecido).

 

Repleto de elementos familiares da carreira do realizador, Django Libertado abusa de recursos narrativos clássicos dos seus filmes, como a quebra de linearidade, travellings que acompanham conversas ao redor de uma mesa, explosões súbitas de violência, intervenções narrativas abruptas e fartos diálogos que alongam as conversas. E não esquecer o humor negro característico comprovado pela cena em que um grupo de racistas (precedendo o Klu Klux Klan) planeia um ataque e o choque cultural proporcionado pelo alemão de Waltz e praticamente todos os brancos sulistas visto na projeção.

 

Sem ser tão envolvente como um Pulp Fiction ou um Kill Bill e arrastando-se mais do que deveria nas suas quase três horas de duração, Django Libertado é meramente estilo dos pés à cabeça – mas, bolas, que estilo!

 

 


Argo

Argo (2012)

Realização: Ben Affleck

Argumento: Chris Terrio

Elenco: Ben Affleck, Bryan Cranston, Alan Arkin, John Goodman, Tate Donovan, Clea DuVall, Christopher Denham, Scoot McNairy, Kerry Bishé, Rory Cochrane, Victor Garber, Kyle Chandler

 

Qualidade da banha:

 

Na linha da frente como vencedor do Melhor Filme nos Oscars deste ano, Argo confirma Ben Affleck como uma promessa cumprida atrás das câmaras. Abandonando a sua Boston natal (palco de Vista Pela Última Vez e de A Cidade), Affleck conta a história da produção fictícia de Hollywood que serviu de fachada para resgatar seis funcionários da CIA presos no Irão em 1979 – uma premissa tão absurda que até custa a acreditar que poderia acontecer. Mas aconteceu.

 

Esforçando-se para evitar uma postura pró-americanismo, o filme contextualiza o papel dos EUA no mapa político de Médio Oriente de então e acompanha com fluidez os esforços para alavancar a produção em Hollywood e o drama dos reféns em Teerão. É claro que a leveza e o humor presentes nas cenas em Los Angeles atenuam o peso dramático da situação asfixiante a milhares de quilómetros de distância, mas a segurança com que Affleck conduz a narrativa denota uma solidez e uma economia admiráveis, visto que o grande número de personagens é minimamente desenvolvido sem criar confusão no espectador.

 

No entanto, é quando a história salta exclusivamente para o Irão que Argo intensifica o drama e empilha cena tensa atrás de cena tensa – e, apesar da artificialidade de alguns obstáculos imprevistos no caminho da missão, a película já ofereceu tantos bons momentos que facilmente se perdoam os equívocos do seu cada vez mais promissor realizador. E que, espantosamente, não foi nomeado na sua categoria pela Academia e que poderia ocupar sem problemas a vaga do cada vez pior Steven Spielberg.

 

 

 

Lincoln

Lincoln (2012)

Realização: Steven Spielberg

Argumento: Tony Kushner

Elenco: Daniel Day-Lewis, Sally Field, Tommy Lee Jones, David Strathairn, Joseph Gordon-Levitt, James Spader, Hal Holbrook, Gulliver McGrath

 

Qualidade da banha:

 

Depois do fracassadoCavalo de Guerra, Steven Spielberg volta à carga com mais um filme feito à medida da temporada de prémios – e, inexplicavelmente, ‘Lincoln’ tem recebido uma calorosa receção por onde tem passado. Usando como ponto de partida a votação da 13ª. Emenda à Constituição norte-americana, que aboliria a escravatura, Spielberg retrata o famoso presidente dos EUA com tamanha reverência que se torna difícil para o espectador perceber quem era o homem por detrás do cargo ou, pior do que isso, ter uma noção distorcida dos factos que levaram à abolição.

 

O filme descreve o processo como um amontoado de subornos e pressões (o que é bom e confere um mínimo de complexidade à narrativa), mas ignora o papel de incontáveis outros indivíduos (entre eles muitos negros) que ajudaram a causa. Em vez disso, Lincoln é posto no centro da ação como agente praticamente isolado que tenta agregar aliados para os seus objetivos – e quando a personagem apela ao divino para justificar a sua missão, percebemos como Spielberg é maniqueísta ao ponto de pintar o presidente como digno de admiração irrestrita. Ou seja, uma quase santo.

 

Isto é uma pena porque Daniel Day-Lewis constrói mais uma espetacular interpretação que só é sabotada pelo próprio argumento que não resiste a recorrer ao assassinato do presidente só para arrancar mais umas lágrimas da plateia. Já Sally Field comete o pecado de uma atriz em busca de prémios e reconhecimento ao... mostrar que está em busca de prémios e reconhecimento ao abordar cada uma das suas cenas como se fosse o momento digno do selo "For Your Consideration", ao passo que Tommy Lee Jones defende bem o seu ferveroso e admirável Thaddeus Stevens que é tão mal tratado pela narrativa ao torna-lo num lacaio de Lincoln. Além disso, a narrativa não tem agilidade ao lidar com um enorme número de personagens e torna-se entediante do meio para a frente.

 

Tenho saudades do antigo Spielberg; o atual é o terror dos diabéticos.

 

publicado às 23:36

O Hobbit: Uma Viagem Inesperada

por Antero, em 18.12.12


The Hobbit: An Unexpected Journey (2012)

Realização: Peter Jackson

Argumento: Fran Walsh, Philippa Boyens, Peter Jackson, Guillermo del Toro

Elenco: Martin Freeman, Ian McKellen, Richard Armitage, Ken Stott, Graham McTavish, William Kircher, James Nesbitt, Stephen Hunter, Dean O’Gorman, Aidan Turner, John Callen, Peter Hambleton, Jed Brophy, Mark Hadlow, Adam Brown, Sylvester McCoy, Lee Pace, Ian Holm, Elijah Wood, Hugo Weaving, Cate Blanchett, Christopher Lee, Barry Humphries, Andy Serkis.
 

Qualidade da banha:

 

A matemática não falha: de um livro com mais 1500 páginas divididas por três volumes, Peter Jackson fez a excelente trilogia d' O Senhor dos Anéis; de um livro com poucas mais de 300 páginas, Peter Jackson realiza a trilogia d' O Hobbit. O que podemos esperar daqui? Simples: uma obra esticada ao máximo, prolixa, repetitiva e sem nada que justifique a indefensável duração de quase três horas - isto apenas para o primeiro filme.

 

Há uma certa nostalgia em revisitar a Terra Média e rever seres que acompanhamos por três longas-metragens, mas o maravilhamento já lá vai: situado seis décadas antes dos eventos que levaram à formação da Irmandade do Anel, O Hobbit mostra logo a sua intenção ao incluir um dispensável prólogo em que um envelhecido Bilbo Baggins se prepara para escrever as suas memórias no dia do seu aniversário - e por mais agradável que seja voltar a ver as caras de Ian Holm e Elijah Wood, o facto é que esta introdução não serve para rigorosamente nada e podia ter sido limada na sala de montagem. O problema é que sequências destas estão espalhadas ao longo da película.

 

Subitamente, um jovem Bilbo (Freeman) vê a sua casa invadida por 13 anões e é convocado pelo feiticeiro Gandalf (McKellen) para os auxiliar numa jornada rumo ao seu antigo lar tomado pelo temível dragão Smaug. Se antes conhecíamos a fundo e nos identificávamos com os 9 integrantes da Irmandade, os 13 anões deste novo capítulo são praticamente indiferenciáveis uns dos outros a não ser pelas suas aparências físicas, exceção feita ao líder Thorin (Armitage) que é o único a ter uma personalidade minimamente delineada, mas nada que fuja do cliché do valentão determinado que hostiliza um pobre indefeso (Bilbo, claro) apenas para se tornarem grandes camaradas no fim.

 

Comprovando que o fiasco de Visto do Céu não foi por acaso, Peter Jackson, ao lado das argumentistas Fran Walsh e Philippa Boyens (com contribuições de Guillermo del Toro), perde um tempo precioso em cenas que não acrescentam nada à narrativa como a embaraçosa participação do feiticeiro Radagast e o duelo entre os Gigantes de Ferro que, mesmo espetacular, não tem qualquer valor para a jornada que acompanhamos. O realizador, porém, chega ao cúmulo de perder tempo até nas cenas que realmente interessam: o primeiro ato, com os anões no Shire, arrasta-se até ao limite da paciência... que é cruzado quando números musicais são inseridos sem razão aparente. Ao mesmo tempo, flashbacks são atirados ao calhas amputando a fluidez da narrativa e contribuindo para a impressão da fragilidade da história que, inevitavelmente, soa episódica e repetitiva (perdi a conta das vezes em que o grupo se mete em sarilhos para serem salvos por Gandalf).

 

Falhando também ao desenvolver um clima de tensão pela vida das personagens (além de sabermos que algumas não morrerão por que aparecem n' O Senhor dos Anéis também nunca as sentimos em perigo de vida), O Hobbit mostra alguma vitalidade quando Gollum (Serkins) e Um certo Anel entram em cena. Se os efeitos que davam vida à criatura já eram impressionantes há dez anos atrás, estes surgem agora ainda mais aperfeiçoados potenciando ao máximo o trabalho do sempre brilhante Serkins. Aliás, do ponto de vista técnico O Hobbit é puro deleite: o design de produção é magnífico, as criaturas digitais são fabulosas e convincentes, as paisagens de cortar a respiração e os figurinos são um espetáculo à parte. Só há um pequeno problema...

...os 48fps.

 

Alardeado como o primeiro filme a fazer uso da tecnologia que duplica a projeção de frames por segundo (o estabelecido desde o fim do cinema mudo são 24), O Hobbit aterra nas salas cheio de pompa e circunstância prometendo uma experiência inigualável no que ao realismo diz respeito. Mas será mesmo assim? Bem, mais ou menos.

 

Com uma resolução de imagem maior do que as projeções a 24fps, o filme conta com um detalhe de imagem astronómico e a projeção contorna os problemas de luz e foco associados ao 3D, visto que a imagem aparece límpida e cristalina. Por outro lado, este detalhe todo faz com que reparemos na artificialidade de algumas maquilhagens e até do próprio cenário (a meio do filme comentei que estava a assistir a uma elaboradíssima peça de teatro). O pior, porém, acontece quando há movimento no ecrã: condicionado a décadas a ver em 24fps, a impressão que o olho humano tem é exatamente o oposto do realismo pretendido, já que parece que a velocidade foi acelerada. No início é muito bizarro: as personagens movem-se depressa demais no mesmo espaço temporal e, uma vez habituados à estranheza daquela fluidez absurda, Peter Jackson emprega cortes que abreviam a duração dos planos e fazem com que o espectador mal registe o que acabou de ver (além de que há momentos em que a imagem parece encravar para de seguida avançar rapidamente como num streaming).

 

A ideia que fica é Peter Jackson recorreu aos 48fps pela revolução tecnológica que poderia inaugurar sem sequer se preocupar em adaptá-la às suas necessidades. O Hobbit é uma obra pensada, filmada e montada para a linguagem dos 24fps e a projeção dos 48fps acaba por prejudicar mais do que acentuar a experiência. Obviamente que tudo isto é alheio aos méritos artísticos (ou falta deles) da produção e, assim, para todos aqueles que se apaixonaram pela Terra Média idealizada por Tolkien e levada ao ecrã por Jackson, O Hobbit: Uma Viagem Inesperada é um desconsolo. Seja em 24fps, 48fps, 2D, 3D, a preto e branco ou virado do avesso.

 

publicado às 23:07


Alvará

Antero Eduardo Monteiro. 30 anos. Residente em Espinho, Aveiro, Portugal, Europa, Terra, Sistema Solar, Via Láctea. De momento está desempregado, mas já trabalhou como Técnico de Multimédia (seja lá o que isso for...) fazendo uso do grau de licenciado em Novas Tecnologias da Comunicação pela Universidade de Aveiro. Gosta de cinema, séries, comics, dormir, de chatear os outros e de ser pouco chateado. O presente estaminé serve para falar de tudo e de mais alguma coisa. Insultos positivos são bem-vindos. E, desde já, obrigado pela visita e volte sempre!

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