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A realidade sonhada

por Antero, em 23.07.10

 

Na comunidade cinéfila, há um certo número de indivíduos que repudiam o conceito de blockbuster (muitas vezes com razão, como comprovam as porcarias lançadas por Hollywood todos os anos). Lançados nas alturas de maior afluência às salas (Natal e Verão do hemisfério Norte), os blockbusters são aqueles filmes de grande orçamento que aplicam o paradigma do espectáculo de massas que é o Cinema, apostando em valores técnicos que, muitas vezes, não encontram reflexo num aprimoramento narrativo. Expoente máximo do negócio que sustenta Hollywood, a maioria desses filmes não vale um décimo da milionária campanha publicitária de que são alvos e, por isso, é tão prazeroso assistir a um filme como A Origem: sem renegar a sua génese de entretenimento sazonal feito para render milhões, ele consegue a proeza de aliar o melhor que a tecnologia actual oferece a uma história insólita, inteligente e fascinante. Mérito para Christopher Nolan, um dos poucos artesãos que ainda consegue criar obras instigantes sem tratar o espectador como um atrasado mental.

 

Desenvolvido durante mais de uma década e alvo de extensas revisões, A Origem traz Dom Cobb como um profissional de uma arte peculiar: ele consegue extrair segredos valiosos dos sonhos dos seus alvos quando estes se encontram num sono profundo, logo quando a mente está mais vulnerável e o subconsciente se encontra mais activo. A sua habilidade é um trunfo na área da espionagem empresarial e Dom, bem como a sua equipa, é encarregue de um trabalho arriscado e complexo - em vez de retirar uma ideia, eles terão que plantar uma na mente de um herdeiro de uma companhia poderosa e, com isso, fazer com que ele desmembre o vasto império do seu pai enfermo. Como fugitivo internacional, Dom encara esta tarefa como a saída necessária para voltar à sua família e encerrar as acusações que recaiem sobre si, algo que não será nada fácil, visto que a sua própria consciência pode deitar tudo a perder.

 

Tal como emShutter Islandlançado este ano, Leonardo DiCaprio interpreta Dom como um sujeito dividido entre a realidade e o sonho, remoído por actos passados e que encontra nas suas memórias o escape necessário para manter a sua sanidade e, também como no filme de Scorsese, uma figura feminina representa a origem da sua psique conturbada. Como herói torturado, DiCaprio parece repetir o mesmo Teddy Daniels daquele filme só que, aqui, Dom parece estar em absoluto controlo de tudo o que o rodeia, isto até as suas próprias lembranças comecem a ameaçar o sucesso da empreitada. E que empreitada: dissecando a psique humana de várias formas, Nolan mergulha-nos numa viagem surrealista que envolve sonhos dentro de sonhos, vários níveis de consciência, consciências paralelas e um sem número de alegorias que remetem para a eterna batalha entre as diferentes instâncias do aparelho psíquico (Id, Ego e o Superego).

 

Por exemplo, para exemplificar a mente fracturada de Cobbs, Nolan não hesita em utilizar a metáfora de um elevador no qual cada andar corresponde a um nível da estrutura mental (memórias) que ele idealizou, ao mesmo tempo que sugere que, a cada etapa da missão, a noção de tempo torna-se mais difusa, retratando a distância cada vez maior da realidade (o que levará ao clímax, na qual três acções paralelas convergem de forma impactante). Por outro lado, a morte no irreal representa o despertar da consciência do indivíduo; os acontecimentos de um nível superior influenciam os do seguinte; e cada um dos intervenientes no processo deve ter um objecto pessoal (um totem) que servirá como âncora para a realidade. Todos estes conceitos engenhosos vêm embrullhados numa estrutura de heist movie (filme de golpe) que compensa as partes mais cerebrais do filme com elaboradas sequências de acção.

 

Repleto de cenas de inegável beleza plástica (os planos em câmara lenta são de tirar o fôlego e a luta num corredor de hotel é sensacional), A Origem conta com faustosos efeitos especiais que, longe de serem um mero artifício, soam orgânicos à narrativa: se abrimos a boca de espanto por vermos parte de uma cidade ser "dobrada" é pelo que aquilo representa no contexto - nada mais do que a infinitude das capacidades da mente humana aquando o sonho. Além disso, o filme conta com um elenco em perfeita sintonia, do qual se destacam Ellen Page como a novata Arquitecta a desvendar as possibilidades do processo de Extração (tal como nós), Joseph Gordon-Levitt a destilar profissionalismo como o Apontador, Tom Hardy como o desconfiado Falsificador, Cillian Murphy como o milionário emocionalmente atormentado pela sua relação fraterna, e, claro, Marion Cotillard que, em poucos minutos, cria uma personagem trágica dividida entre o real e o que ela quer que seja a sua "realidade".

 

No entanto, o grande mérito de A Origem é a sua confiança na inteligência do espectador, obrigando-o a pensar por si e a estar atento a cada pormenor, sob pena da compreensão da obra ficar irremediavelmente perdida (não há cá finais mastigados a explicar tudo ao pormenor). Tal como acontecia em Memento ou O Terceiro Passo, o argumento é hipnotizante na forma como vai arquitectando as suas ideias, além de oferecer um protagonista com traços em comum com tantos outros das obras anteriores de Nolan (o indivíduo que, em busca da redenção, é capaz de pôr tudo em causa para o conseguir - aqui é a noção de "realidade"). Merecedor de ser visto mais do que uma vez, A Origem é uma experiência altamente gratificante capaz de prender a atenção do espectador até ao último segundo.

 

Literalmente.

 

Qualidade da banha: 19/20

 

publicado às 19:45


2 comentários

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De A Silva a 06.08.2010 às 18:07

Fui ver o filme e adorei! Há muito que aguardava que estivesse em exibição!
Desde o conceito que orienta todo o filme, até aos mais pequenos pormenores: a progressão exponencial do tempo, a forma de "acordar" os participantes... até aos pormenores técnicos que transmitem a sensação de que o sonho não tem mesmo limites. A história desenrola-se com clareza e fluidez - não obstante a sua complexidade - e os personagens têm a dimensão adequada ao seu papel. A banda sonora mistura-se com a acção de forma perfeita. Acentua a intensidade de cada cena, de cada momento, no entanto, nunca é protagonista!
Pelo exposto, e por muito mais que o autor do texto mencionou (e os inúmeros pormenores que escaparam a ambos), é sem dúvida uma obra envolvente!

Já agora, gosto de ler o seu blog. Agradeço pelas criticas fundamentadas e construtivas, bem como pelo inteligente, sarcástico e mordaz uso da nossa língua - começa a escassear!
Lamento as recentes sessões de insulto de que foi alvo... mas online, onde o anonimato torna as pessoas "corajosas" este tipo de comportamento é comum.

Cumprimentos

A Silva
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De Antero a 07.08.2010 às 01:51

Obrigado pelo caloroso comentário. Falou na banda sonora e falou muito bem. Não a abordei no texto por esquecimento, mas o certo é que a mesma é uma das melhores peças de Hans Zimmer, compositor que até nem é dos meu favoritos. Haveria muito mais para dizer sobre 'A Origem', pelo que o meu texto me parece curto para tal monumento cinematográfico (e não queria estragar certas surpresas para quem ainda não viu).

Quanto aos comentários menos abonatórios, a celeuma já lá vai e os filmes da saga 'Twilight' não deixam de ser uma bosta para mim.

Cumprimentos e volte sempre.

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Alvará

Antero Eduardo Monteiro. 30 anos. Residente em Espinho, Aveiro, Portugal, Europa, Terra, Sistema Solar, Via Láctea. De momento está desempregado, mas já trabalhou como Técnico de Multimédia (seja lá o que isso for...) fazendo uso do grau de licenciado em Novas Tecnologias da Comunicação pela Universidade de Aveiro. Gosta de cinema, séries, comics, dormir, de chatear os outros e de ser pouco chateado. O presente estaminé serve para falar de tudo e de mais alguma coisa. Insultos positivos são bem-vindos. E, desde já, obrigado pela visita e volte sempre!

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