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Muitos consideram que este último decénio fez mal ao bom velho Marty, que se deixou acomodar no lado mais comercial de Hollywood e deixou de ser o autor de outros tempos. Da minha parte não concordo: é certo que Gangs de Nova Iorque esteve aquém das expectativas, mas O Aviador e The Departed - Entre Inimigos deram novo fôlego a Scorsese (não vi, ainda, Shine a Light) e, em muito tempo, os seus filmes começaram a aliar boas carreiras nas bilheteiras com os elogios da crítica. Para todos aqueles que consideram que o mestre já não é o mesmo, é bem provável que o comercial Shutter Island seja mais lenha para a fogueira, levando-os a ignorar os méritos da produção e a passar um pano sobre o facto de que, mesmo a conduzir obras pouco pessoais, Scorsese já teve bons resultados como comprovam A Cor do Dinheiro ou O Cabo do Medo.
Em 1954, dois U.S. Marshalls são chamados para a remota ilha Shutter, onde funciona uma instituição psiquiátrica, com o objectivo de investigar o desaparecimento de uma paciente. A instituição alberga criminosos com doenças mentais e a desaparecida tem tendências homicidas. Para piorar, a mesma desapareceu sem deixar rasto e tudo indica que ainda estará na ilha, da qual se aproxima uma tempestade que a deixará isolada por uns dias. Um dos Marshalls é Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) que tem traumas de guerra para superar e depara-se a relutância do pessoal do hospital em colaborar nas investigações. Aos poucos, o clima de paranóia adensa-se e Teddy será obrigado a confrontar os seus fantasmas para resolver o caso.
Mergulhando o espectador numa atmosfera claustrofóbica, opressora e desconfortável, Scorsese deixa o público às cegas tal como o seu protagonista, o que se revelará importante para a compreensão da sua trajectória, algo salientado pelo própria situação social da altura, com a guerra às bruxas e ao comunismo promovida pelo Senador McCarthy. Teddy perdeu a esposa há uns anos e ainda não superou o choque da violência e degradação humana que presenciou no campo de extermínio de Dachau e como ele comprovou o pior que a natureza humana pode realizar, nada mais acertado que este se encontre dividido entre o que é irreal ou não compartilhando essa experiência com a plateia. Sonho e pesadelo, realidade e ficção andam de braço dado ao longo da projecção e Scorsese parece divertir-se imenso ao brincar com as expectativas e os receios do público, ao mesmo tempo que evidencia o seu típico amor pela Sétima Arte que vão de referências a filmes de terror dos anos 40, 50 e 60, passando por Hitchcock e Brian DePalma, onde a ambientação contava muito.
Para isso contribui a própria ilha Shutter que parece ganhar vida na objectiva de Scorsese: local deprimente tanto nos interiores do hospital como na vastidão florestal ou nas imponentes falésias, tudo contribui para a constante sensação de perigo que aflige o protagonista e, consequentemente, o espectador. Porém, nada disso valeria a pena se a personagem principal não levasse o público a identificar-se com ela e, neste aspecto, o filme só sai a ganhar com a actuação cuidada de Leonardo DiCaprio que há muito deixou de ser uma carinha laroca para se transformar num actor maduro e inteligente. O elenco secundário também não faz feio: Mark Ruffalo transmite confiança como o agente Chuck Aule, Sir Ben Kingsley demonstra todas as nuances e dualidades do afável e misterioso Dr. Cawley, ao passo que Michelle Williams desperta a nossa pena como a sofrida Dolores e o veteraníssimo Max von Sydow é a autoridade em pessoa como o Dr. Naehring.
Contando com uma fotografia belíssima de Robert Richardson que deprime e fascina na mesma medida e uma montagem precisa de Thelma Schoonmaker, ambos colaboradores habituais de Scorsese, Shutter Island até pode ter um desenlace mastigado demais para o público, mas o mesmo funciona porque acompanhamos toda a turbulência interior do momento e as razões que levaram até lá. E, como tantas vezes na sua filmografia, Scorsese oferece-nos a dissecação de um protagonista trágico, numa batalha consigo mesmo e com o seu habitat, tal como Travis Bickle, Jake La Motta, Robert Pupkin, Jesus Cristo, Frank Pierce e Howard Hughes.
Qualidade da banha: 16/20