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Mickey Rourke é um actor que atingiu a fama nos anos 80, com filmes como O Ano do Dragão, 9 Semanas e Meia e Nas Portas do Inferno (que é imperdível, quanto mais não seja pela fabulosa reviravolta que encerra o filme). Elogiado pelo seu talento e presença em cena, ele decidiu mandar isso tudo às urtigas e enveredou por uma carreira de boxeur nos anos 90. Quando decidiu voltar a actuar, Hollywood foi implacável pelo seu comportamento e fama de arruaceiro e Rourke afundou-se em filmes sem expressão, daqueles que ficam na prateleira dos videoclubes a acumular pó. Isto até voltar a ser contratado como secundário de luxo por gente como Tony Scott e Robert Rodriguez, que viam nele a tal figura de duro ideal para personagens do género (como pode ser observado na personagem de Marv em Sin City – A Cidade do Pecado).
Agora reparem: Randy “The Ram” Robinson era um wrestler famoso pelos seus espectáculos nos anos 80, mas que actualmente se encontra na miséria, dedicando-se a fazer espectáculos quase amadores para plateias que mal se lembram dele. As suas finanças estão arruinadas, ele não tem família, a sua fama mais não é que a frustração de um passado glorioso e longínquo, e mesmo assim ele dedica-se à vida de wrestler porque aquilo é a sua vida e a única coisa que ele sabe e tem gosto em fazer. Isto até ter um enfarte após um combate mais intenso, o que o impede de continuar a praticar esse desporto e o faz reavaliar toda a sua trajectória. O que é que The Ram e Rourke têm em comum? Para além do percurso de ambos em que qualquer semelhança não é pura coincidência, o segundo interpreta o primeiro, o que torna O Wrestler num quase exercício de metalinguagem sobre a carreira do actor e da personagem de ficção. Só isto bastaria para chamar a atenção do público para este filme.
Mas não é só. O filme de Darren Aronofsky tem tantos pontos positivos que é difícil saber por onde começar. Ou melhor, nem tanto. Basta começar pela mais que elogiada interpretação de Mickey Rourke, que torna The Ram num indivíduo amargurado pelas escolhas que fez no passado, mas que encara o que faz com tamanho profissionalismo e dedicação, que é impossível para o público não se identificar imediatamente com ele. Ele não é uma pessoa irascível à procura de redenção (numa solução que Hollywood nunca dispensa): ele trata os seus companheiros com simpatia e respeito, como se estes fossem a sua verdadeira família; ele tenta reaproximar-se da filha adolescente com quem perdeu contacto (e a confissão e admissão de culpa que ele lhe faz à beira-mar é extremamente comovente); e quando Randy se vê atrás de um balcão para ganhar algum sustento, ele tenta tirar o máximo prazer da situação, embora se sinta diminuído e saudoso da emoção dos ringues. Acima de tudo, Randy tem um carácter autodestrutivo que o levou até àquela situação, carácter esse que vislumbramos quando ele trata realmente mal a stripper Cassidy, a sua única amiga (maravilhosa Marisa Tomei). Rourke, tal como Randy nos ringues, entrega-se de tal maneira ao papel, que até chegou a cortar-se de propósito numa das cenas mais chocantes do filme, depositando todo o peso do seu trajecto cinematográfico no papel.
Darren Aronofsky filma tudo com a câmara na mão e a opção revela-se acertada: em vez de alienar o público da história, ele torna-o mais próximo das personagens e encontra belas rimas visuais, como no momento em que Randy se prepara para iniciar o trabalho no talho e a câmara acompanha-o por trás com o som de uma plateia num pavilhão antes do espectáculo. Aliás, Aronofsky consegue a verdadeira proeza (pelo menos, para mim) de manter o interesse nos combates encenados do wrestling, não nos poupando dos horrores a que os lutadores se sujeitam em prol do espectáculo (a parte dos agrafos é terrível) e a sua câmara trata a modalidade com imensa admiração, como se aquela fosse a percepção de Randy sobre o seu triste quotidiano.
O cuidadoso argumento de Robert Siegel trata ainda a stripper Cassidy como uma mulher real, autêntica. Tal como Randy, ela tem o seu palco, mas devido ao peso dos anos, começa a ficar para trás na preferência dos clientes. Tal como o amigo, talvez seja chegada a hora de deixar a "ribalta" e Tomei retrata-a com extrema sensibilidade. Não admira que uma das melhores cenas do filme seja aquela em que Randy se solta no café e convida-a a cantar e dançar em público, como se ambos partilhassem as mesmas tristezas e merecessem extravasá-las (e, de certa forma, até que partilham). Do mesmo modo que Randy decide abandonar um palco, logo encontra outro mais particular para dar um sentido à sua vida: reatar a relação com a sua filha Stephanie que, para ele, se torna a verdadeira tábua de salvação da sua rotina sem os combates.
Duro e intenso, O Wrestler é um filme que conta com interpretações fabulosas e um protagonista caído em desgraça que tenta recuperar a sua dignidade moral, que até pode vir das pequenas coisas, como os agradecimentos de clientes anónimos que se cruzam com ele. O filme ainda conta com mais um ponto a seu favor que é saber acabar no momento certo, com aquele salto de Randy para a posteridade. A sua dignidade acabou por ser o seu verdadeiro - e mais intenso - combate. Palmas para ele.
Qualidade da banha: 18/20