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Black Swan (2010)
Realização: Darren Aronofsky
Argumento: Mark Heyman, Andres Heinz, John McLaughlin
Elenco: Natalie Portman, Vincent Cassel, Mila Kunis, Barbara Hershey, Winona Ryder
Qualidade da banha:
NOTA: este texto discute detalhes importantes sobre o filme (entre eles, o final), por isso aconselho a sua leitura após a visualização do mesmo. É por vossa conta e risco! Depois não digam que eu não avisei...
Cisne Negro é um exercício exaustivo e complexo sobre a perfeição. Um estudo sobre a Obra e o Artista que, comprometido de corpo e alma com a sua Arte, tenta ultrapassar todos os limites e abraçar a visceralidade inerente a cada obra-prima. É esta a jornada emocional que espera Nina Sayers (Portman), uma bailarina que tem a oportunidade de uma vida ao ser escolhida para protagonizar O Lago dos Cisnes na companhia dirigida pelo exigente Thomas Leroy (Cassel). No entanto, a ambiguidade do papel revela-se um enorme obstáculo, uma vez que Nina tem dificuldade em incorporar a sensualidade necessária de Odile, o Cisne Negro da peça que se mascara de Odete, o Cisne Branco que, puro e casto, não revela qualquer problema para a bailarina. Atormentada pela pressão do papel, Nina ainda deve lidar com a chegada Lily, uma nova integrante do grupo que poderá ser uma concorrente no protagonismo do bailado.
Extremamente dedicada à dança, Nina investe todos os momentos do seu dia-a-dia num cansativo aprimoramento da sua dança, o que não é de admirar: frágil e insegura, a rapariga partilha a casa com a sua protectora mãe que, ex-bailarina, serve como guia orgulhosa dos feitos da filha ao mesmo tempo que denota uma certa frustração por ter abandonado a carreira em prol da família. Desta forma, é natural que Nina encare a dança como o único escape para o sufoco que a mãe lhe inflige e Portman é inteligente ao retratar Nina não como uma pessoa determinada, mas como alguém que realmente precisa de ser protegida de tudo e de todos, já que nem mesmo os comentários maldosos das suas colegas merecem uma resposta firme por parte dela. Nina tem a graciosidade que Thomas suplica para o papel, mas falha na aura mais sensual que Odile deve transmitir por não conseguir libertar toda a sexualidade reprimida em si – e quando este fogo faz uma rachadela na tômbola que o aprisiona (ou seja, quando Nina se masturba) logo é apagado pela presença da mãe, espelhando o recalcamento a que ela está sujeita.
Por falar em espelhos, poucas vezes se viu um uso tão eficaz e orgânico de todos os simbolismos que eles permitem. Através de reflexos, Aronofsky envolve-nos na consciência de Nina e acompanhamos cada uma das etapas do seu descalabro emocional e psicológico, deixando-nos sempre na dúvida (tal como a protagonista) sobre as estranhas visões que tomam conta da narrativa. Esta dualidade é algo que percorre por toda a película e através de variadas manifestações: se a mãe representa o lado adulto e sedutor que a infantilizada Nina tarda em descobrir, a recém-chegada Lily é encarada ora como rival (as asas tatuadas nas suas costas são um pormenor brilhante) ora como amiga, já que a sua espontaneidade leva não só o autoritário Thomas a pensar nela como substituta, mas também exerce um poderoso fascínio em Nina, cujos esforços e racionalização para atingir a precisão absoluta contrastam com a naturalidade e diversão dos movimentos da parceira (isto até chegarmos ao acto final de Cisne Negro, que será abordado no último parágrafo).
Belíssima homenagem ao bailado (tal comoO Wrestlerera para o wrestling), Cisne Negro inclui detalhes sobre o árduo quotidiano dos bailarinos profissionais, como o ranger dos soalhos, a constante repetição de coreografias até chegar ao pretendido, e as mazelas e desgaste das articulações sofridos pelos praticantes – e até mesmo o design de produção acerta ao vestir Lily com roupas escuras e Nina com adereços claros, assim como pinta o quarto desta em tons de rosa e atulhado de peluches, numa demonstração da natureza pura e infantil da bailarina. Com um uso constante de sombras que realçam o sentimento de opressão na história, o filme também conta com um trunfo na banda sonora, que usa partes da partitura de Tchaikovsky para complementar as cenas fora da companhia, deixando bem vincado que a devoção à dança é algo que acompanha Nina a toda a hora.
No entanto, é Darren Aronofsky e Natalie Portman que exploram a proposta do filme a fundo e tornam-no numa experiência tão marcante: o realizador planta pequenas pistas que indicam o crescente desiquilibrio de Nina, seja em visões dela própria ou em reflexos que se movem instantes depois dela e Aronofky não perde a oportunidade de dar vazão às suas fantasias quando sugere uma metamorfose literal de Nina num cisne negro. Aos poucos, Nina vai-se distanciando da moça fragilizada do início da projecção e descobre uma faceta sua que desconhecia: a sua sexualidade – e, ao querer incorporar duas dimensões do mesmo ser, ela resvala para a esquizofrenia e a transformação acontece a todos os níveis (físico, psicológico e emocional). Se antes Nina dançava com distanciamento e frieza, no final aceita toda a magnitude do seu ser e atinge a tão almejada perfeição (e Portman é estupenda ao transpirar a sensualidade e confiança que antes lhe faltava). Porém, isto não surge sem um preço: em mais uma projecção literal da mente quebrada de Nina, as duas personalidades entram em conflito e, para que a excelência seja uma realidade, haveria um obstáculo a abater – nem mais nem menos que a própria Nina, ferida de morte com um golpe de um estilhaço de um espelho partido (como ela mesma).
São estes simbolismos que tornam Cisne Negro uma experiência transcendente, intensa e evocativa, com a frase de encerramento a resumir não só o feito de Nina, mas o filme como um todo: "Eu senti-o. Foi perfeito."