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Os melhores (e piores) filmes de 2014

por Antero, em 31.12.14

boyhood-2014

Mais um final de ano, mais uma vez a já tradicional lista de melhores e os piores filmes estreados em Portugal em 2014, segundo a minha opinião.

 

1

Boyhood - Momentos de Uma Vida

Boyhood

Filmado ao longo de quase 12 anos, Boyhood é o mais ambicioso filme de toda a carreira do multifacetado Richard Linklater. Ao acompanharmos o crescimento de Mason (a revelação Ellar Coltrane), Linklater inevitavelmente leva a que reflitamos sobre a nossa própria e efémera experiência neste mundo e, assim, Boyhood alcança um efeito paradoxal: embora não tenha nada de extraordinário para contar, o filme foca-se na vida – o que, por si só, já é algo extraordinário.

 

2

Her - Uma História de Amor

Her

Um dos argumentos mais insólitos que eu me lembro, mas isso não é de espantar já que a mente por detrás do mesmo é Spike Jonze, um dos mais originais e virtuosos talentos revelados em Hollywood nas últimas décadas. Situado numa Los Angeles futurista mas perfeitamente plausível, Her é uma reflexão da necessidade humana de amar e sentir-se amado, o crescente isolamento da humanidade totalmente viciada na tecnologia e a forma como esta dita não só os nossos hábitos, mas também os nossos estados de espírito.

 

3

12 Anos Escravo

12 Years a Slave

Cineasta com um olhar atento para os limites e a brutalidade da natureza humana, o britânico Steve McQueen desvia a sua lente da individualidade (a greve de fome em Fome e o vício sexual de Vergonha) e foca-a num dos episódios mais degradantes da história da Humanidade: a escravidão.Violento, implacável e absolutamente essencial.

 

4

O Senhor Babadook

The Babadook

O Senhor Babadook não é um mero filme que assusta com altos acordes na banda sonora e sangue por todo o lado. Não; este filme inspira genuíno medo graças a uma ambientação digna de um pesadelo, uma realização precisa e uma visceral interpretação de Essie Davis (que, num mundo justo, estaria na corrida dos próximos Oscars). Perturbador e comovente, é desde já uma obra-prima do terror moderno.

 

5

O Filme Lego

The Lego Movie

É reconfortante perceber que até nas mais elaboradas peças de marketing – e, deixemo-nos de hipocrisias, uma longa-metragem sobre as peças Lego não tem outra razão de existir que não a de vender produtos da marca – há lugar para o mais puro entretenimento. O Filme Lego eleva-se acima da concorrência apostada em eternizar franquias desgastadas (sim, até mesmo a outrora infalível Pixar) porque capta o imaginário infantil como poucas animações conseguem numa (hilariante) história que celebra a individualidade, a inocência e a criatividade no meio do conformismo e do cinzentismo do mundo adulto.

 

6

Snowpiercer - Expresso do Amanhã

Snowpiercer

Ambicioso como alegoria social, fascinante como ficção científica pós-apocalíptica e espetacular como entretenimento, Snowpiercer une as sensibilidades do cinema oriental aos recursos do Ocidente e não se cansa de sacar coelhos da cartola até ao seu perfeito e subvalorizado desfecho.

 

7

Em Parte Incerta

Gone Girl

Quase sádico na forma como manipula as reações do público e realizado com competência e elegância por David Fincher, Em Parte Incerta beneficia-se pelas fabulosas de atuações de Ben Affleck e Rosamund Pike (dois atores que nunca tive em grande conta), pelo arrepiante humor negro e pelo ataque direto ao histerismo mediático construído por meios de comunicação que não hesitam em assumir a figura de acusador, juiz e carrasco em nome das audiências e do dinheiro.

 

8

X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido

X-Men: Days of Future Past

Aproveitando o que de melhor têm os X-Men no cinema (e, sim, há muita coisa boa por aqui), o regresso de Bryan Singer à franquia origina um sensacional blockbuster que conta com um argumento envolvente, personagens carismáticas, um elenco que é de sonho e cenas tão inventivas (como o tiroteio na cozinha) que é impossível não ficar rendido.

 

9

O Lobo de Wall Street

The Wolf of Wall Street

Martin Scorsese tão enérgico que mais parece que está em início de carreira volta a provar por A mais B a razão pela qual ainda é o melhor realizador norte-americano em atividade. O Lobo de Wall Street é juvenil, parvo, histérico, sexista e muito mais de negativo que se possa apontar aos seus protagonistas, mas a diferença (e este é o grande trunfo do filme) é que a objetiva de Scorsese faz questão de apontá-los como seres degradantes com poucas hipóteses de redenção e em momento algum defende as atrocidades que eles cometem.

 

10

O Homem Mais Procurado

A Most Wanted Man

Que enorme ator era Phillip Seymour Hoffman! E que grande filme é O Homem Mais Procurado para servir de montra para o imenso talento do ator falecido em fevereiro deste ano. Aqui está um thriller de espionagem feito por e para adultos. Cínico, melancólico e que substitui as sequências de ação do tipo James Bond por outras que se concentram no meticuloso trabalho executado por espiões que dependem mais de jogos psicológicos, estratégias e habilidade do que de armas para realizarem as suas tarefas.


Outros destaques de 2014, por ordem alfabética:

Agentes Universitários

O Clube de Dallas

O Duplo

Grand Budapest Hotel

Guardiões da Galáxia

Locke

Má Vizinhança

Os Maias – Cenas da Vida Romântica (versão integral)

Ninfomaníaca (Volumes I e II)

Planeta dos Macacos: A Revolta

Quando Tudo Está Perdido

Só os Amantes Sobrevivem

 

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-10

Ao Encontro de Mr. Banks

Saving Mr. Banks

Os bastidores da adaptação de ‘Mary Poppins’ para o grande ecrã dariam material para um filme, mas certamente poderiam originar algo mais refinado do que este burocrático e desonesto Ao Encontro de Mr. Banks. Com uma estrutura errática e um mar de obviedade e pieguice, o filme não tem receio em apostar em estereótipos como o norte-americano caloroso e homem de família (Walt Disney) versus a britânica fria e neurótica (P.L. Travers).

 

-9

Eu, Frankenstein

I, Frankenstein

Aaron Eckhart "desfigurou-se" em O Cavaleiro das Trevas e deu-se muito bem. Quis repetir a gracinha nesta barulhenta, histérica e incoerente porcaria e deu-se muito mal.

 

-8

O Filho de Deus

Son of God

Se A Bíblia, série do History Channel, já não era um portento em televisão, a sua versão fragmentada para o cinema não passa de uma mera colagem de episódios sem grande fluidez ou reflexão e até sem nenhuma outra perspetiva dos autores – o que desde logo reduz o seu alcance como longa-metragem. Ampliado no grande ecrã, O Filho de Deus mostra todos os defeitos da versão televisiva: parcos valores de produção, uma lógica visual inerte e uma escala bem mais comedida para algo que deveria ser épico. Quanto ao “nosso” Diogo Morgado, que aproveite a oportunidade e as supostas portas que o papel lhe terá aberto, mas tanto ele como o que o rodeia roçam o insípido e o desnecessário, mal conseguindo disfarçar a condição de produto oportunista.

 

-7

Tartarugas Ninja: Heróis Mutantes

Teenage Mutant Ninja Turtles

Ao longo dos anos ganhei um medo de morte ao sul-africano Jonathan Liebesman. O realizador estreou-se com Terror na Escuridão, um péssimo filme de terror; voltou ao género no dispensável Massacre no Texas – O Início; e cuja obra mais conhecida é Invasão Mundial: Batalha Los Angeles, uma ficção-científica de ação que é um terror. A verdade é que Liebesman não deixa o seu prestígio em mãos alheias: é um tarefeiro que tenta emular as “qualidades” do seu mentor, nada mais nada menos que Michael Bay. Tartarugas Ninja: Heróis Mutantes é esteticamente feio, narrativamente pobre e com atuações para lá de esquecíveis, com a bela Megan Fox mais uma vez a mostrar que o seu talento é inversamente proporcional aos seus atributos físicos. 

 

-6

Sex Tape - O Nosso Vídeo Proibido

Sex Tape

Promete muito a início, mas logo mostra o seu objetivo: ser um enorme e agressivo anúncio aos produtos da Apple. Além disso, é uma comédia inofensiva. Dá até pena de Jason Segel.

 

-5

Transcendence – A Nova Inteligência

Transcendence

Uma confusão. Se se limitasse a ser um filme de série B, Transcendence até poderia ser razoável com o seu elenco em modo "isto é sério demais para mim" e buracos narrativos que se vêm da Lua. Mas como é produzido por Christopher Nolan, isto é para levar a sério e o filme quer discutir (e mal) tanta coisa ao mesmo tempo que se perde ainda no primeiro ato (o que é uma proeza).

 

-4

Sei Lá

Sei Lá

Lisboa, 1998. Vem aí a Expo e "Portugal já não estará na cauda da Europa!". Quatro mulheres caricaturas: a sonhadora, a voraz, a pragmática e a coitadinha. Os homens são para usar e deitar fora, mas dá jeito ter o conforto de um. Um terrorista basco (?). Onde andas, Joaquim Leitão? Surpreendentemente, o livro é melhor.

 

-3

Mil e Uma Maneiras de Bater as Botas

A Million Ways to Die in the West

O sucesso inesperado leva, muitas vezes, ao desastre criativo. Um falhanço a quase todos os níveis (a fotografia e a banda sonora escapam à hecatombe), Mil e Uma Maneiras de Bater as Botas comete uma série de erros que, todos elencados, não dariam para uma enciclopédia: é demasiado longo; está recheado de “piadas” que andam à volta de palavrões, gases, urina, animais… por vezes todas juntas na mesma cena; Seth MacFarlane não tem ponta de carisma para ser protagonista e, ao rodear-se de um elenco tão bom e tão desperdiçado, só mostra que está muitos degraus abaixo em matéria de talento; as “piadas” ora são mal construídas, ora são repetidas ad infinitum, ora são atiradas ao acaso para, regra geral, atingirem o público com um estouro tão notável que a pergunta que fica é “como alguém achou que isto teria piada?”. 

 

-2

Transformers: Era da Extinção

Transformers: Age of Extinction

Ah, Michael Bay e a sua infinita capacidade em explodir coisas. Já não bastasse a sua “trilogia da sucata”, o realizador volta à carga com mais um capítulo do equivalente cinematográfico a levar com uma frigideira na cabeça durante tortuosos 165 minutos. Horrível, exagerado e estupidificante do primeiro ao último minuto, cria o desejo que o subtítulo se torne realidade.

 

-1

Eclipse em Portugal

Eclipse em Portugal

Nem num festival de vídeos amadores vocês encontrarão um filme tão horroroso e imbecil como Eclipse em Portugal, regresso do meu "estimado" Alexandre Valente às longas-metragens após esse portento de nome (até dói só de lembrar) Second Life. Valente referiu que fez um filme “de tostões”, sem apoios comunitários, mas nada justifica o festival de erros que passa no ecrã. Diálogos pobres, atuações caricaturais, edição deficiente (nota-se as diferenças de luz entre os planos) e o tratamento de som é de fugir (há diálogos que variam do impercetível ao quase berro – e isto na mesma frase!). Baseado num crime real, a história (história?) ridiculariza o criminoso, a sua família, os seus amigos, a sua comunidade e até os pobres coitados que aceitaram enfiar-se neste buraco. E como não há nada que não possa piorar, o filme recorre à solução que atesta a falência artística de qualquer comédia: erros de gravações. Ah, Valente!

 

Outros destaques (pela negativa) de 2014, por ordem alfabética:

300 – O Início de um Império

Os Gatos Não Têm Vertigens

Godzilla

Grace de Mónaco

O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos

Os Mercenários 3

Need For Speed: O Filme

Não Há Duas Sem Três

Ressaca de Saltos Altos

 

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Bom ano e bons filmes!

publicado às 18:50

The Hobbit: The Battle of the Five Armies (2014)

Realização: Peter Jackson

Argumento: Peter Jackson, Fran Walsh, Philippa Boyens e Guillermo del Toro

Elenco: Martin Freeman, Richard Armitage, Luke Evans, Evangeline Lilly, Lee Pace, Orlando Bloom, Cate Blanchett, Hugo Weaving, Christopher Lee, Billy Connolly, Aidan Turner, Ryan Gage, Ken Stott, Stephen Fry, Ian McKellen

 

Qualidade da banha:

 

E eis-nos chegados ao último tomo da trilogia mais dispensável de sempre. Um final que nunca consegue justificar a divisão deste fiapo de história em três filmes e que acredita que nos preocupamos com os destinos de Bilbo, dos anões, dos elfos e do raio que o parta quando as seis horas anteriores não conseguiram torná-los minimamente interessantes ou queridos junto do público (até porque sabemos de antemão quem sobreviverá para aparecer no O Senhor dos Anéis).

 

Quase não estive para escrever este texto já que os erros e acertos de A Batalha dos Cinco Exércitos são os mesmos que referi quando analisei Uma Viagem Inesperada e A Desolação de Smaug: um exercício de prepotência e excessos, um festim para os olhos sem emoção, longos e grandiosos discursos que não diminuem o tédio dos acontecimentos e, claro, cenas irrelevantes para a jornada em questão e que só estão lá revermos caras conhecidas e fazer ligações desnecessárias com eventos posteriores. Isto tudo ao som da banda sonora de Howard Shore que deve ser pago ao minuto visto que praticamente não há um momento de silêncio durante o filme.

 

Iniciando-se com o ataque de Smaug a Esgaroth prometido no desfecho do capítulo anterior, A Batalha dos Cinco Exércitos começa logo a pressionar os botões da irritação já que o dragão sai de cena aos dez minutos - o que me levou a questionar o bom senso artístico de Peter Jackson que poderia perfeitamente ter incluído esta parte em A Desolação de Smaug e não o prejudicar com aquele fim abruto. Com a criatura fora da equação, os anões liderados por Thorin (Armitage) conquistam a Montanha Solitária e, enquanto procura a Arkenstone que Bilbo (Freeman) mantém escondida, o rei anão fica paranóico em relação aos tesouros que agora possui e decide renegar o seu acordo com os humanos liderados por Bard (Evans). Entretanto, o rei elfo Thranduil (Pace) decide atacar a Montanha para recuperar parte do tesouro que julga pertencer ao seu povo, ignorando a aproximação dos perigosos orcs comandados por Azog (Bennett). Isto resultará na batalha do título e que ocupa a maior parte da projeção.

 

Impecável nos aspetos técnicos (com a exceção do tenebroso rejuvenescimento digital de Legolas), A Batalha dos Cinco Exércitos não é mais do que um longo e cansativo desfecho indeciso entre o tom épico que deseja imprimir e a infantilidade proveniente dos escritos de Tolkien. A repetição e a falta de subtileza são atributos que Peter Jackson parece ter abraçado ao longo dos anos e este filme poderia ser um best of desta constatação: dos diálogos expositivos às mudanças de caráter inexplicáveis e repentinas (Thorin, Thranduil), passando pelas incontáveis vezes que alguém é salvo no último instante e acabando na insistência em passagens com seres descartáveis (Alfrid, Radagast, Galadriel, Sauron, etc.). É inacreditável, aliás, que tanto tempo investido naquele universo não tenha deixado espaço para amarrar as pontas: o que aconteceu aos tesouros da Montanha? Foram divididos pelos pretendentes? Ficaram todos satisfeitos? Para quê, então, toda aquela batalha?

 

Batalha essa que empalidece daquelas vistas n' O Senhor dos Anéis não obstante os avanços tecnológicos na última década já que a carga dramática é nula. Thorin é um líder tão antipático e Thranduil tão arrogante que fica impossível torcer por algum deles - e, assim, ficamos entregues à pasmaceira de esperar que Bilbo saia vivo da Montanha (o que sabemos que acontecerá) e deprimir por vê-lo tão apagado na sua própria história. De qualquer forma, o nosso Hobbit sempre está um patamar acima dos anões que o rodeiam que, chegados ao terceiro capítulo, continuam sem se distinguirem uns dos outros a não ser em termos de vestuário e maquilhagem. Já a adição da elfa Tauriel volta a revelar-se uma curiosidade inócua por estar caída de amores por um anão e presa a pastosos diálogos que fazem estremecer a Terra Média (e Evangeline Lilly merecia um prémio só por permanecer inteira ao dizer coisas como "Não há amor em ti!" e "Porque dói tanto?!")

 

Incluindo um combate numa arrebatadora cascata congelada que tem tanto de empolgante como de estúpido (o pouco prático calhau usado como arma por Azog é ridículo até porque este tem uma enorme lâmina no lugar do braço!), A Batalha dos Cinco Exércitos ganha uma certa vida quando Jackson descortina a imensidão e o alinhamento dos exércitos e tem um ou outro momento de tirar o fôlego (quando os elfos saltam sobre uma fileira de anões), mas é a prova que um ou dois filmes seriam mais do que suficientes para elaborar esta prequela. É triste ver um cineasta como Peter Jackson desperdiçar os seus créditos desta maneira. A Terra Média precisa de descanso, Hollywood!

 

publicado às 18:07

Há pouco mais de um ano, eu era uma pessoa deprimida após o final de Breaking Bad. Ainda havia boas séries no ar, mas nada ao nível da excelência daqueles produtos que, não só nos põem a salivar pelo episódio seguinte, como também permitem que cada capítulo possa ser "saboreado" pelos seus valores narrativos, estruturais e técnicos. Até que The Good Wife lança o já mítico 5x05 - Hitting The Fan e o meu Twitter explode em elogios - e eu, apesar de conhecer a série e já ter-lhe posto os olhos uma ou outra vez sem grande entusiasmo, ativei o modo Maria-vai-com-as-outras e lá fui ao nosso amigo torrent sacar e ver o episódio. No final, só pensava que tinha de fazer uma maratona da boa esposa e já!

 

Em tempos que as séries mais comentadas têm entre 10 a 13 episódios, tratam assuntos polémicos, a violência (moral ou física) rola solta e o sexo é uma constante, The Good Wife chega sem pompa e circunstância e trilha o seu caminho de cabeça levantada mesmo tendo tudo contra si. Afinal, estamos a falar de mais um drama de advogados que é transmitido em canal aberto, obedece ao padrão de 22 capítulos anuais, o conteúdo é mais restrito, a fórmula reside muito no típico "caso da semana", o seu alcance e sucesso depende inteiramente das audiências e não permite, em teoria, grandes ousadias criativas que os canais por cabo oferecem sem problemas. Além disso, a série é transmitida pela CBS que, com os seus intermináveis enlatados de investigação e comédias imbecis como The Big Bang Theory ou Two And a Half Men, faz logo torcer o nariz a quem percebe da indústria e - heresia! - a protagonista é uma mulher quarentona rodeada por adultos da mesma faixa etária - óbvio turn off para a malta mais jovem sedenta de zombies esfomeados. Mesmo em Portugal, The Good Wife é praticamente uma desconhecida exceto pelos espectadores regulares da FOX Life que também não se inibe de culpas ao tratar a série com descaso demorando meses a transmiti-la e compactando temporadas em episódios diários que diluem o efeito das mesmas.

 

E, ainda assim, sem sangue, sexo, palavrões, mortes chocantes e reviravoltas dignas de Shonda Rhimes, The Good Wife assume as suas limitações e aborda-as como obstáculos a contornar com histórias absorventes, personagens fortes e marcantes e uma sofisticação que raramente se vê noutros produtos contemporâneos. Poucas são as séries que chegam à sexta temporada em tão boa forma, mas aí está The Good Wife a manter o pique depois de um brilhante quinto ano que, contando com o (intenso, fabuloso, magnífico) episódio supracitado, foi a única que vi bater de frente em qualidade com a reta final de Breaking Bad. Quem acompanha e percebe da poda, sabe que não é exagero.

 

(Spoilers de agora em diante, mas nada do outro mundo.)

 

O ponto de partida, admito, não é dos mais promissores: Alicia Florrick é a esposa de um State's Attorney (o equivalente ao nosso Procurador da República - cada Estado norte-americano tem um) que se vê obrigada a voltar a exercer advocacia após anos de dedicação à família assim que o seu marido é preso por conta de um escândalo sexual e suspeitas de má conduta, tráfico de influência e desvio de dinheiro. Caída em desgraça, Alicia consegue trabalho na firma Lockhart/Gardner e tenta refazer a sua vida profissional e familiar a partir do zero. A certa altura, o termo "the good wife" deixa de fazer sentido (e os próprios criadores já admitiram que o título não é dos mais felizes ou chamativos) já que o grande arco da série trata-se da transformação da "coitadinha" Alicia que tem de provar o seu valor para os seus superiores numa mulher independente e poderosa - uma trajetória que é construída com cuidado, sensibilidade, com avanços e recuos, e que por demorar o seu tempo e ser tão detalhada para alguém que tem de cumprir os papéis de mãe, esposa, advogada, funcionária, amiga e até amante e eventualmente patroa, é perfeitamente verosímil e agradável de acompanhar uma vez que as mudanças na narrativa raramente soam bruscas ou demasiado convenientes.

 

E isto é um dos pontos mais fortes de The Good Wife: a série está em constante evolução e, mesmo que tenha de responder ao requisito do "caso da semana", há toda uma história nos bastidores que avança, as personagens crescem diante dos nossos olhos e arcos que duram três episódios ou meia temporada dão lugar a novos eventos que vêm na sequência lógica de tudo o que está para trás. Claro que isto não deixa de ser uma série de advogados e, como tal, a Lockhart/Gardner e Alicia ganharão 90% dos casos, o que não significa que a vitória seja total. Há uma aura de ambiguidade que se instala naquele universo e guia aquelas personagens seja num caso em que os adversários pagam uma indemnização milionária, mas bem abaixo do que pretendiam, nas concessões que os empregados exigem dos patrões que, por sua vez, tentam aliciar trabalhadores para evitar uma greve ou nos casos que remetem para notícias atuais. E por falar em atualidade, nenhuma outra série aborda a tecnologia e os seus efeitos no quotidiano com a densidade e a criatividade de The Good Wife: aqui não há espaço para posições extremas como a tecnofobia ou a reverência à mesma; há, sim, uma discussão fascinante sobre as suas implicações no modo como vivemos e interagimos uns com os outros.

 

No entanto, The Good Wife destaca-se mesmo é na subtileza com que discute, nas entrelinhas, temas atuais na vivência de qualquer país industrializado: o conflito geracional no mercado de trabalho em que a classe mais velha, experiente e, por isso mesmo, privilegiada só tem olhos para o lucro, manda e desmanda a bel-prazer e, em tempos de crise, tem de manter o barco à tona enquanto os jovens e recém-chegados têm de galgar terreno ou ficarão para trás na escala hierárquica cujo topo é o prémio. Não admira que os jogos políticos e as intrigas da série atirem a um canto as lutas vazias por tronos de Game of Thrones: no mundo moderno, não há nada a fazer quando a influência e o dinheiro são mais fortes que a espada.

 

Tudo isto, porém, pode dar a impressão que a série é um poço de soturnidade e depressão. Nada mais errado: The Good Wife é divertidíssima, tem um humor invejável e uma galeria de secundários que é uma atração à parte num dos mais abençoados e acutilantes elencos que a Televisão já viu (os meus favoritos são David Lee, o inescrupuloso representante de direito familiar da firma, e Patti Nyholm, a advogada que usa gravidezes e bebés para ganhar vantagem em tribunal, sem esquecer o sensacional Eli Gold). O destaque, porém, pertence mesmo ao leque principal de atores com Julianna Margulies a mostrar o porquê de ser considerada uma das maiores estrelas da televisão norte-americana. O trabalho de Margulies com Alicia é dos mais completos que já vi: a atriz domina todas as facetas da advogada e brilha num esforço recheado de pequenos detalhes, nuances e expressividade contida. A série cria uma bagagem emocional ao longo dos anos que resultam em cenas nas quais o silêncio, as expressões e até a linguagem corporal de Alicia dizem mais do que um monólogo inteiro de Aaron Sorkin.

 

Também é de destacar o respeito com que os produtores de The Good Wife tratam as figuras femininas: para além de Alicia, temos a incrível Diane Lockhart que, focada na carreira, nunca, em momento algum, fica a lamentar da falta de "um homem" ou filhos - afinal, ela está demasiado ocupada a ganhar casos atrás de casos. E - aleluia! - haja um produto de Hollywood em que duas mulheres adultas se ajudam mutuamente para atingir interesses comuns e não se envolvem em disputas amorosas ou vinganças infantis. O nosso envolvimento, aliás, com todas as personagens é tanto que, quando a série comete a ousadia de os separar e pôr em lados opostos da barricada (que é o cerne do tal episódio que destaquei no primeiro parágrafo), não há como torcer contra algum deles. Queremos que Alicia vença, mas não queremos forçosamente que os seus patrões percam - e é esta ambiguidade que torna tudo tão fascinante e divertido. Tudo isto ao sabor de um texto refinado (a escrita da série é de topo) e interpretações dignas de aplausos.

 

Muitos têm reclamado da atual sexta temporada porque a mesma se tem dedicado à campanha política de Alicia para o cargo de State's Attorney. Eu discordo. As politiquices são tão relaxadas e divertidas que distanciam-se do tom quase macabro que a política consegue ter numa, digamos, House of Cards, para abordar o lado mais leve, trivial e caricato que a política também consegue ter. Já para não falar que a campanha contrasta com o drama quase irrespirável de Cary Agos estar em vias de ir preso devido a Lemond Bishop, o traficante mais famoso de Chicago e cliente da Lockhart/Gardner e posteriormente da Florrick/Agos. Depois de anos a brincar na corda bamba de defender um criminoso (ainda que com a desculpa dos seus negócios legítimos), The Good Wife pega nesse detalhe insignificante e agarra o touro pelos cornos, impondo às suas personagens (e aos espectadores) dilemas morais e éticos que rios de dinheiro toldavam.

 

Produto televisivo sobre e para adultos, The Good Wife é imperdível e merece a oportunidade. A primeira temporada é boa, as duas seguintes são muito boas, a quarta dá uma recaída, mas recupera lá no meio e vai em crescendo até atingir patamares excelentes - que é o ponto onde nos encontramos agora. Não se deixem levar pelo nome. Alicia Florrick veio para ficar e causar estragos.

 

publicado às 01:22


Alvará

Antero Eduardo Monteiro. 30 anos. Residente em Espinho, Aveiro, Portugal, Europa, Terra, Sistema Solar, Via Láctea. De momento está desempregado, mas já trabalhou como Técnico de Multimédia (seja lá o que isso for...) fazendo uso do grau de licenciado em Novas Tecnologias da Comunicação pela Universidade de Aveiro. Gosta de cinema, séries, comics, dormir, de chatear os outros e de ser pouco chateado. O presente estaminé serve para falar de tudo e de mais alguma coisa. Insultos positivos são bem-vindos. E, desde já, obrigado pela visita e volte sempre!

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